Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


06-07-2010

Crônicas da Emigração S. S. Potêncio


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Os Retornados!...

De: S.S. Potêncio,

Esta nostalgia de ver os “ir ós do mar” de volta c’uas bicuatas à Santa Terrinha, e de mãos a abanar,... trouxe-nos de volta esta amargura, que teima em estar presente, ainda que tantas vezes rechaçada ao longo destes mais de 36 anos. E por isso deixo-vos apenas esta crônica que faz parte do meu livro “Crônicas da Emigração – Catramonzeladas”, o qual se encontra no prelo em busca de editor...     

 

(039)... Os “Retornados”!!!

 

 <<... Quem tem seis asas e voa com duas, sempre voa e canta. Quem tem duas asas e quer voar com mais, cansará logo e chorará!... (Vieira) -  Cá para mim,...  ser livre e viver feliz, nem asas eu preciso ter para voar!...>>  

 

Andorra-A-Velha,... idos de Janeiro do ano de 1977, nós éramos  saídos de Portugal pela fronteira de Vila Real de Santo António, e dali nós subimos a costa do mediterrâneo Espanhol dentro do "Subaru 1300", com o amigo Manuel Zé ao volante, a Esposa dele do lado, eu e o Julio no banco de trás encolhidos, dentro de uns "sobretudos" de "fardo" (***) que nos tinham sido distribuídos pelo IARN em pleno inverno de 1975, logo após a nossa chegada vindos de Angola.

-- Os dias eram muito menores que os de Angola,  aos quais estávamos já tão acostumados, depois de quase onze anos de permanência abaixo da linha do equador.

 - Ah,... o gostoso calor dos trópicos!...

 - Que saudades!... mas voltemos ao ponto de partida;  O episódio desta    ® “CATRAMONZELADA” é igual a tantas outras mas  que, realmente, marcou a vida de tantos milhões de patrícios nas cinco partidas do globo.

Desconhecíamos o facto de existirem duas Andorras ( a Nova lá no alto da montanha aonde chegaríamos depois de umas voltas em Andorra a Velha) e isso,  quase nos fez desistir da viagem planejada para seguir até à Bélgica,  onde residia e trabalhava um parente afastado da esposa do Manuel Zé, o qual tinha escrito uma carta de lá,  a dizer que conseguiu um contrato como "baterista" de uma banda, até hoje desconhecida para nós e certamente para todos os mortais porque,  na realidade tudo não passou de uma fantazia de simples "retornados" em busca de um rumo na vida errante que nos foi criada com a descolonização do Ultramar Português!!!

- Estávamos quase há 18 meses sem salário, sem perspectiva de emprego,  e os "dois mil e duzentos escudos" que recebíamos do subsídio do Governo Português,  naquela época, raramente chegavam para pagar a "bica" e o maço diário de "SG"!... (aprendi desde garoto que quem não tem dinheiro,  não tem vícios)!,....mas o facto é que o nosso único vício naquela época chamava-se;  "sobreviver" !

- Sobreviver ao vexame do desemprego, da volta para casa e encontrar tudo fechado, sobreviver à enxurrada dos "tsunâmis"  sociais (vindos do ultramar português, vindos de avião de navio, de carro, de caminhão e quiçás a escorregar pela tábua abaixo, depois de ultrapassar as montanhas do Atlas Norte-Africano!) com mais de 2 milhões de almas que entraram nas fronteiras de Portugal em apenas alguns meses no pós "banquete político" que foi a descolonização, promovida pelos nomes emblemáticos,  tão conhecidos de todos nós após o 25 de Abril de 1974!....

A nosso ver, o  pior para aqueles que não conseguiam resistir ao fascínio da maconha,  do haxixe, da coca e outras "coisas" que por ali circulavam na calada da noite, nos hotéis do fascinante Algarve nacional, quando não à luz do dia e das "trombetas anunciantes do fracasso do Alvor".

-  Outros mais infantilmente,  entravam pelo casino de Vila Moura, ou Monte Gordo, com umas 10 moedas  de "vinte e cinco tostões"  (que eram o resultado cambial de; UM MIL ESCUDOS ANGOLANOS EQUIVALIAM = a 25$00  - VINTE E CINCO ESCUDOS DE PORTUGAL!...

... os meus últimos 10 contos angolanos, ganhos com honestidade,  suor e muitas lágrimas,  que vendi na Praça do Rossio, depois de muito procurar comprador,  só me renderam 250$00 !!!...

Isto porque o Banco de Portugal não honrou o pagamento do papel moeda emitido em nome das Ex Colónias conforme havia prometido.   

No inicio do ano de 1977 reunimos uns colegas do tempo da tropa, ali pelas bandas de Armação de Pera,  e tomámos a decisão;  vamos emigrar!.

- Isto aqui não se conserta mais nunca!... Se naquela época eu advinhasse a "sorte grande" da mesma forma que hoje,  uns 28 anos depois, eu constato esta verdade puramente projectada em vaticinio,  certamente o meu destino teria sido  muito diferente.

 

_ Bonjour!... quelque chose a declarer???... o "gendarme" quase nem deixou o Manuel Zé abrir a janela do Subaru!...

-  ele havia encostado o carro no posto fronteiriço, logo abaixo uns 1500 metros na saída em direção a Mont Blanc.

As paredes da estrada, com uns dois metros de neve, de cada lado,  não nos deixavam ver muita coisa da paisagem, e p'ra quê!??..

-  nós queríamos mesmo,  era entrar na França, e haviam-nos dito que Andorra era o melhor lugar... embora todos tivéssemos o passaporte Português ainda que emitido em Luanda.

- Como eu era o "intérprete" oficial e juramentado, ...  (pela alma da minha burra russa que no céu esteja)!...

Creio que já falei dela aqui, em outra crônica meses atrás, assim  tipo guia turista de araque, feito a martelo na cégada da minha ida p'ro Algarve, eu não entendi nada do que ele perguntou!,...  e, por uma questão de educação, eu fui logo respondendo;

- Oui!,... Oui!,...  Oui Monsiú...

... bonjú, nois somos de Angola,... retornados!, voismecê entende??? 

- Passeport, s'il vous plait!...

 (recolheu todos os nossos passaportes de imediato e os colocou no bolso do capote)...

... Sortie de la voiture, vite, vite!...

... ainda sem saber o que estava a acontecer, a mulher do Manuel Zé tremia mais que as maracas da tal banda imagniária,... ela  começou a berrar em português!...

 Pô... que merda!... não tem o passaporte?

P’ra quê sair do carro?...

O  frio era tanto que nem em português ela conseguia falar...  e então o "gendarme" se irritou de verdade!...

Ele mandou abrir a mala do carro, e de lá tirámos tudo p'ra fora.

  - Eu ensaiei um pouco mais o meu "franciu" e lá comecei a arrazoar; Sr. guarda nós somos retornados, não temos nada!!!

 - só a roupa do corpo e uns trocados para fazer uma merenda nos próximos dois dias.

- Deixe-nos passar...

-  Os passaportes estão legais, foram tirados em Angola, certo... mas são Portugueses!...

--- non, non, arrête tois!...

-   me empurrou “delicadamente para o lado da porta da mala do carro...  e acabei do lado do Manuel Zé que, a essa altura, ele já estava mais branco do que a neve, à nossa volta!!!... mesmo ele sendo “mulato”!

-  Ele que era "pardo" !!!... se é que me entendem!, Angolano, Mulato e no meio da neve no alto da montanha à saída de Andorra para ir à Bélgica,... onde esperava encontrar um primo afastado,  que lhe prometeu um trabalho no bar-boite, onde ele tocava "bateria" para sobreviver!!!

-  Só Deus sabia nesse instante  o que estava dentro do carro, e ele Zé Manel, também!...

-  "nois ficámos a saber logo depois de o gendarme pronunciar o bendito... "vas ‘Y ... vas’Y... bonne chance"!!!

 (podem ir e boa sorte!)

- O resto deste episódio eu me reservo o direito de não o relatar aqui, e talvez nunca!, ... por respeito aos meus colegas de infortúnio, aonde quer que eles estejam, que Deus vos abençoe!!!

... Mas sobretudo por respeito a mim mesmo, à minha família e à minha tranqüilidade de consciência porque o "gendarme" estava certo, e nós totalmente errados.

- O cheiro que ele sentiu dentro do carro foi “amenizado” pela minha baforada de um cigarro HABANO (tabaco preto) que eu tinha acabado de comprar uma Hora antes, numa Tabacaria em Andorra a Velha, e o choro da esposa do Manuel Zé, salvou o resto!.... 

Dedico esta crônica,  ainda que parcial, aos confrades que recentemente se "engalfinharam" aqui no espaço cibernético,  ao tentar decifrar os desígnios da história do 25 de Abril em Portugal depois de 1974... a quem comumente nós costumamos apelidar de  “O Código Dá VintchCinco de Abriu-loooooooooo”....  

 

(***) E.T. - roupa de "fardo" são roupas usadas, geralmente recolhidas por instituições de caridade americanas... e de outras nacionalidades, e que se vendem em Angola, bem como em outros países Africanos quando na verdade deveriam ser "doadas" por instituições de caridade. - As tão apregoadas ONGs... Organizações Não Governamentais.    

                                                           *****

(extraído do Livro “Crônicas da Emigração – Catramonzeladas”  parcialmente editado virtualmente )

Silvino Potêncio – Emigrante Transmontano    www.aloportugal.org  

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