Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


20-06-2009

Angola: Não prego uma greve geral contra a ocupação de cargos públicos na Ang


"PERIGOSO QUE TODAS AS VOZES RELEVANTES SE CALEM ACOMODADAS"

Afirma Marcolino José Carlos Moco, um angolano de corpo e alma que, para além de primeiro-ministro, também foi governador das províncias do Huambo e Bié, Secretário-Geral do MPLA e Secretário-Executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP)

Sempre deu o corpo ao manifesto. Para quê? Para ajudar o MPLA a implementar o seu programa de Governo. Mas, quando menos esperava, o líder do partido para o qual milita desde os 20 anos de idade apeou-o inopinadamente do poder e, como paga, virou-lhe as costas. A ligeireza do click do teclado do computador, ligado à Internet, viabilizou a presente entrevista com Marcolino José Carlos Moco que nos serve, já a seguir, uma sobremesa de criticas, observações e chamadas de atenção sobre o estado do Estado angolano.


Moco sabe do que fala ou não tivesse ocupado, por indicação do partido no poder em Angola, lugares políticos cimeiros como o de governador das províncias do Huambo e Bié, Secretário-Geral do MPLA e Secretário-Executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

Atenção às palavras inteligentes e oportunas deste jurista e docente da cadeira de Contecioso Administrativo na Universidade Lusíada, em Luanda, nascido há 56 anos na província angolana do Huambo.

Por Jorge Eurico

“Não prego uma greve geral contra a ocupação de cargos públicos na Angola de Eduardo dos Santos”

Notícias Lusófonas - Admitiu publicamente, aqui há uns tempos, que já não é tão fanático do MPLA como o foi em 1974 quando aderiu a este partido. Está desiludido?

Marcolino José Carlos Moco - Não é uma questão de desilusão. É uma questão de maturidade. Naquela altura eu era um rapazinho de 20 anos. Hoje sou um kota de 56. Quando somos mais jovens, tendemos a “absolutizar” determinadas crenças mas o tempo ensina-nos que tudo é relativo o que não significa necessariamente niilismo. A realidade é tão complexa que se pode mesmo dizer que até a própria relatividade não é absoluta, ou seja, que até a própria relatividade é relativa.

NL - Em entrevista concedida recentemente ao jornal “O País” disse que defende "uma mais célere abertura do país em ideias, mentalidades e Liberdade de Expressão". Estes valores ainda não fazem parte de nós?

MJCM - Suspeito que só me ponha esta questão para ser eu a confirmá-la, porque na verdade isto é uma constatação óbvia, vergonhosa e geral. Neste aspecto o que se passa é o que se chama dar com uma mão e tirar com a outra. A Constituição consagra esses valores que são universais e creio que não há perseguições abertas contra quem pratique essas liberdades. No meu caso eu exprimo livremente as minhas ideias e nunca sofri nenhuma represália a não ser de ordem política - partidária, o que é evidente para quem siga o meu percurso, especialmente, desde 1992; só que para mim isso constitui preocupação porque, desde jovem que para mim, política é um serviço social e não meio de vida. De profissão eu sou professor e há muitas outras coisas que sei fazer para viver uma vida que não reivindica abundâncias. O que é que se tira com a outra mão? É que se um colega seu do JA, da TPA ou da RNA me quisesse fazer uma entrevista como esta ela não sairia, a não ser que eu fosse o chefe da Oposição e estivesse a passar o Papa por cá, porque esses meios de comunicação pública, nos aspectos políticos, são reserva exclusiva dos “donos do poder”. Como se explica que a Rádio “Eclesia”, um meio afecto a uma instituição universal não possa transmitir a nível nacional, quando uma tal “Rádio Mais”, pertencente a um grupo minoritário, se vai instalando livremente pelo território nacional, mesmo que seja através de FM? São dessas coisas que falo e com que não me imaginava confrontar numa altura dessas no meu país, desde 1992, quando com toda a seriedade, participei activamente na mudança transicional do regime político.

NL - Há Liberdade de Expressão/Opinião no seio do MPLA?

MJCM - Há tempos eu disse que continuava orgânica e sentimentalmente ligado ao MPLA. Hoje, desligado praticamente de qualquer actividade partidária, com a minha exclusão do grupo parlamentar do MPLA, a minha ligação ao MPLA restringe-se ao aspecto sentimental, porque acredito ainda que o MPLA é a única organização que, seja no poder seja na oposição, pode garantir, com certa eficácia, a construção de um país africano do tipo moderno, contando, é certo, com a contribuição autónoma de outras forças sociais e políticas angolanas. Por isso, por uma questão de respeito e de moderação que sempre me caracterizou, evito abordar questões internas do partido. Que não venha a ser mal interpretado por muitos dos meus camaradas e amigos, que são pessoas de grande dignidade e minha estima, até porque eu não estou lá dentro e não sei como é que se desenrolam as discussões e perspectivas.

NL - “O que se discute no partido são vírgulas e não os conteúdos”. Esta expressão também é sua em entrevista ao "O País". Pode ser mais explícito e explicativo?

MJCM - Aqui vou ser explícito porque estava-me a referir às grandes questões que podem afectar a continuidade da estabilização política alcançada até agora no país. Uma delas, ao que constou, parece ter sido respondida a meu contento pelo CC do MPLA, ao rejeitar, in limine, a ideia peregrina de eleições presidenciais, em Angola, por sufrágio indirecto quando não era isso que constava, sequer, do seu programa eleitoral. Outra questão - esta prevalece - é o problema da sucessão do Presidente José Eduardo dos Santos, que tinha afirmado que já não seria o candidato do MPLA para as próximas eleições presidências; que a sua geração devia passar o testemunho. Neste sentido é preocupante que esta situação se tenha tornado hoje um incompreensível tabu e agora embrulhado na falta de esclarecimento sobre a data das eleições presidências, o que alguém (foi o Dr. Abel Chivukuvuku?) - e com razão - chamou de pôr o país refém nas mãos do Presidente. Este é que não é um problema de vírgulas. É um eminente problema nacional e até internacional. E, não me venham dizer que o exemplo de Moçambique, Namíbia e África do Sul - só para citar os que nos são mais próximos - não servem porque nós “somos especiais”. Exemplos de transparência, num regime como o nosso, serão sempre a melhor opção, pelo menos quando se trata das grandes questões, que mesmo sendo partidárias afectam as perspectivas e expectativas de todos. Isto não significa que o Presidente não possa voltar atrás, numa posição que pode ser considerada de natureza política, mas que se clarifique isso a nação. E, por favor, as eleições presidenciais estavam marcadas para 2009 e todas as condições estavam criadas. São estas coisas que descredibilizam o regime, em especial, e a política, em geral. Quando se pensa que isso afinal só depende da vontade de alguém, a quem o seu partido seguirá invariavelmente, tendo toda a gente, por obrigação, que adivinhar o que ele quer, porque nem sempre o diz. E quando diz algo, sobre estes assuntos, fá-lo normalmente nas suas raras deslocações ao estrangeiro.

“Sou adepto dos estóicos da Antiguidade Clássica”

NL - Considerou-se sempre, enquanto ocupou cargos políticos cimeiros, um homem “universalista e pluralista”. Primeiro, o que é isso de ser “universalista e pluralista”? Segundo, ainda define-se como tal?

MJCM - Recentemente publiquei, e está a venda - passe a publicidade - uma brochura sobre Organizações Internacionais que contém a seguinte dedicatória: “Dedico este trabalho aos construtores de um ‘mundo para todos os homens’ de que falava o poeta Agostinho Neto”. Desde muito jovem, e apesar de ter nascido num dos recantos mais discriminatórios e racistas do mundo colonial, para mim ficou claro que homens de todas as cores, de todos os lugares, de ambos os sexos, de todas as condições sociais, somos todos iguais, unidos pela mesma origem e um destino comum. Sou adepto dos estóicos da Antiguidade Clássica, do humanismo renascentista e do iluminismo optimista e moderado. Minha divisa é a máxima de Terêncio: “Homo sum; humani nihil a me alienum puto” que, à minha maneira traduzo da seguinte forma: _ sou homem e tudo o que seja humano me é familiar. É isso o universalismo, e, o universalismo casa com o pluralismo. Não perfilho Cristo, quando diz que a quem me esbofeteia numa face devo oferecer a outra face para que, igualmente, seja esbofeteada. Mas, quando disputo algo com alguém, nunca espero ganhar mais de 50% porque sei que o outro também é gente e é preciso que ele não se sinta esmagado pelas minhas habilidades. Leia-se a História e a conclusão será essa. Os reis de França foram decapitados numa revolução sangrenta, porque nunca quiseram dividir nada com a arraia-miúda. Decapitados também foram os seus intransigentes algozes, instituidores de uma deusa dita Razão. A realeza britânica prevalece até hoje, porque foi cedendo aos clamores dos mais fracos: da Magna Carta ao Bill of Rights. Quando me refiro à realeza, estou a falar de uma instituição e de diversas gerações que a representam, e não de pessoas individuais, que estas nunca serão eternas. Já alguém viveu mais de cento e cinquenta anos fora das Escrituras Sagradas? Tenho dúvidas.

NL - O que é que falta para que a voz das Organizações da Sociedade Civil (OSC) angolana se possa fazer ouvir no interior do País?

MJCM - Na 2ª questão que me colocou, já respondi praticamente à esta pergunta. O mesmo aconteceu na entrevista que referiu, que dei ao jornal “O País” que teve a habilidade de titulá-la de “Moco: José Eduardo deve continuar”, em vez de, por exemplo, “Moco, verdadeira liberdade de imprensa precisa-se”. A talhe de foice, diga-se que as ofensas que recebi de internautas que se limitam a ler títulos sem atender ao conteúdo do que se diz nas entrevistas, não me preocuparam a mim. Deviam, preocupar, pois, aqueles que continuam a pensar, que por serem “especiais”, devem levar o país a caminhar por picadas tortuosas, cultivando um modelo de Estado completamente atípico.
Mas, devo ser mais claro. O que leva a que a voz das inúmeras vozes da sociedade civil - mesmo daquelas vozes moderadas e construtivas - não se ouça, é que a esmagadora maioria de valorosos, patrióticos e talentosos homens da Comunicação Social está manietada nos meios de comunicação pública. Nem preciso de citar exemplos, para não complicar a vida e as famílias de pessoas provadamente honestas e dedicadas às causas públicas.
Uma parte de Comunicação Social privada, que tem jogado um papel de resistência contra este imposto status quo, é obrigada, por vezes, a viver do exagero e de um sensacionalismo, que a descredibiliza, o que é agravado pelo seu diminuto raio de acção, embora muita gente que a usa esteja convencida que está a ser ouvida muito longe.
Eu considero este problema muito grave. Assim não se constrói um país africano moderno e participado, o que não significa que eu não tenha consciência das especificidades angolanas que exigem uma certa contenção no verbo.
Infelizmente, a Igreja Católica, que tem jogado um papel histórico na defesa da construção de uma sociedade equilibrada e justa em Angola, aparentemente, depois de ter contribuído de forma tão decisiva para o calar das armas, está agora a remeter-se ao cumprimento integral da máxima: “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. E é pena. Não se vê como eles “privatizam” os meios públicos de comunicação? Que com as mesmas leis impedem a extensão de meios de comunicação privados que lhes escapam ao controlo, incluindo a própria Emissora Católica, enquanto expandem alegremente os meios privados que lhes são afectos? Aqui está porque a voz da sociedade civil não é ouvida no interior do país.

NL - Que práticas políticas precisam de ser desburocratizadas no País?

MJCM - Muitas. E o meu amigo entrevistador bem as conhece. Uma delas é, por exemplo, a própria burocratização das eleições presidenciais, quando nada, mas absolutamente nada, existe para que isso aconteça. Mais do que burocratização, há mesmo uma privatização/ das eleições presidenciais.
Por outro lado, Angola está praticamente conformada em assistir a que os principais assuntos ministeriais e locais sejam dirigidos, materialmente, pela Presidência da República ou por comissões e gabinetes nomeados por aquela instituição de uma influência avassaladora. E o que é confrangedor é que essa instituição não é responsável pela sua actividade perante a Assembleia Nacional nem perante a opinião pública à qual não presta contas, especialmente, através da Comunicação Social nacional, de uma forma sistemática.
E a interferência nos assuntos locais, que tem em Luanda o seu mais dramático paradigma, é tão preocupante quando a questão da organização do Poder Autárquico desapareceu do mapa das prioridades dos políticos e da própria sociedade civil, reduzindo-se a meros movimentos de carácter técnico, em alguns ministérios afectos à problemática.

NL - Honesta e frontalmente, diga: O que é que o opõe, afinal, ao presidente do seu partido?

MJCM - Eu não me oponho a ninguém no sentido que o meu amigo parece orientar a conversa. Estou é a pôr-me ao serviço cívico, de que tenho legitimidade como cidadão, investigador e homem com experiência política que, em consciência, não penso dever dispensar a troco de qualquer tipo de conforto. Posso garantir-lhe que outras coisas interessantíssimas, para fazer, não me faltam. Mas, sempre que possível, não deixarei de responder a desafios como este, que me coloca hoje, com essa bateria de questões, porque são um meio, entre outros, pelo qual posso dar a minha quota-parte na construção de uma Angola progressiva e desembaraçada de amarras artificiais. Quando me dizem que me devo calar e gozar a vida, e como sei que normalmente só intervenho quando algumas questões se me afiguram preocupantes, recordo sempre a história contada por um mestre brasileiro de Yoga, o professor Hermógenes, que num dos seus livros conta a história de um padre católico francês, que ante as atitudes de Hitler, quando este se decidiu avançar no seu rosário de agressões e crimes na 2ª Guerra Mundial, foi dizendo sucessivamente aos seus paroquianos mais ou menos isso: “não se preocupem com este homem que agora ele está a atacar a Checoslováquia e nós não somos nenhuns eslavos, somos franceses; não se preocupem meus irmãos em Cristo, que este homem agora está a atacar protestantes lá por outras bandas; não se preocupem, meus filhos que ele agora está eliminar a iniquidade dos judeus que mataram Cristo. Mas, um dia, a França foi atacada e com ela a sua paróquia”; e nunca mais a voz do padre foi ouvida.
Com isso, que ninguém insinue que estou a chamar alguém de ditador ou que haja ditadura em Angola. Não há, ainda. É apenas uma metáfora para dizer que é perigoso, mesmo que não seja para a nossa geração, que os destinos de um país vasto e rico, sob todos os pontos de vista, seja deixado nas mãos de um só homem, por mais bem-intencionado que nos possa parecer; e que normas ou consensos anteriormente estabelecidos sejam sistematicamente contornados.

“É perigoso que todas as vozes relevantes do País se calem acomodadas”

NL - Sente-se injustiçado por não ter sido integrado na lista de deputados que compõem o actual Parlamento?

MJCM - Já me pronunciei sobre o meu desprendimento pelos cargos públicos, particularmente nos dias que correm, e isso é tão visível e notório que nem preciso reforçá-lo. Mas, isso não significa que esteja a pregar uma greve geral contra a ocupação de cargos públicos na Angola de José Eduardo dos Santos, onde tanto ele como os seus distintos colabores têm realizado um trabalho de vulto que nunca deixei de reconhecer. Porém, com a oposição enfraquecida e com as práticas que acabo de referir, e que se murmuram por todos os cantos, considero perigoso, até mesmo para os próprios governantes e para a própria liderança que todas as vozes relevantes do país se calem, acomodadas.

NL - Não concorda com a académica Fátima Roque quando diz que o Presidente da República é o único garante da paz. Porquê?

MJCM - Estar a frente de um Estado é uma grande responsabilidade e a tarefa mais sagrada de um Estado que se preze democrático e de direito - sistema para o qual, parecendo que não, caminham, felizmente, todos os Estados africanos sob a batuta da União Africana (UA) - é a conquista da Paz.
José Eduardo dos Santos realizou a tarefa da conquista da Paz depois de quase 30 anos de guerra, que coincidiram praticamente com o seu consulado, a frente dos destinos do país. E, granjeia, por isso, um grande reconhecimento nacional e internacional, tornando-se um dos mais respeitados estadistas da região. Mas, é preciso recordar aqui a velha sabedoria latina: “ubi commoda, ibi incommoda”. O que o Presidente fez é o seu mais sagrado dever e não deve ser endeusado e “monarquizado” por isso, como está ser destacado , com preocupação, por vários sectores da sociedade, e com toda a razão. Ir por esse caminho é introduzir mais elementos de perturbação de que uma certa minoria parece não se sentir cansada.
Se para a minha grande amiga e admirada Doutora Fátima, para quem há bem pouco tempo o grande Salvador era Jonas Savimbi, agora José Eduardo é o único garante da eterna paz, isto significa para mim que alguma coisa está mal. Eu acredito piamente - e passe um pouco de ironia - que mesmo estando eu de fora, o MPLA tem dezenas de soluções de continuidade e renovação, sem que seja necessário desprezar o contributo extenuante e reconhecido do Presidente José Eduardo dos Santos. Aliás, se assim não fosse, só ele mesmo sairia mal na fotografia, utilizando uma expressão muito em voga hoje. Como é que se compreenderia que um partido histórico como o MPLA com tantos Recursos Humanos, por si dirigido durante tantos anos, se apresentasse nessa situação calamitosa de dependência da sua figura, em tempos de democracia?
Só outro amigo meu, o celebrado escritor Eduardo Agualusa o compreenderia, ele que depois de ser dos poucos ilustres que chamou o seu homónimo de ditador acabou por endossá-lo também como “a única coisa aproveitável na lixeira do MPLA”.
Um outro amigo meu - deste nem vou citar o nome - também a partir de terras lusas, e contra tudo o que nos habituou, a partir do outro extremo das ideologias, disse mais ou menos isso: “os africanos actuais deviam conformar-se com a vida que os europeus viveram antes da Magna Carta: _ súbditos e não cidadãos”. Francamente! O meu velho amigo, o respeitado professor Moisés Kamabaia, que por ser um kimbundo - malangista de gema não deixou de absorver com primor a secular cultura anglo – saxónica, diria certamente, a comentar coisa parecida, parafraseando Hamlet: “alguma coisa vai mal no Reino da Dinamarca”.

NL - Como se sentiu na qualidade de legislador e, ao mesmo tempo, executivo numa mesma legislatura?

MJCM - Não há como ser-se legislador e executivo ao mesmo tempo, na nossa ordem constitucional. Em 1992, ao assumir o cargo de Primeiro-Ministro, suspendi o mandato de deputado. A suspensão continuou quando entre 1996 e 2000 fui Secretário Executivo da CPLP. Quando retomei as funções de deputado, nesse último ano, já não exercia nenhum cargo executivo, até 2008 quando terminou o longo mandato de 16 anos da Assembleia Nacional.

NL - Qual foi o programa de Governo proposto ao presidente do seu partido para exercer as funções de Primeiro-Ministro?

MJCM - No nosso sistema, combinado com o facto de que o Presidente não se afasta do Partido que dirige, o Primeiro-Ministro executa (pelo menos no plano teórico) o programa do partido no poder, cujo líder é o Presidente da República. O figurino só poderia mudar se algum dia se viesse a viver um caso de coabitação de partidos vencedores diferentes nas legislativas e nas presidenciais.

NL - O seu programa diferia muito em relação ao do seu predecessor?

MJCM - O meu antecessor (que acabou por ser depois meu sucessor) foi o Professor Doutor França Van-Duném. Por maioria de razão nunca poderia ter elaborado qualquer programa de Governo, visto que não era constitucionalmente chefe do Governo como eu o fui e assumi, pelo menos no plano formal porque isso corresponde à letra da Lei Constitucional actual, que é de 1992, e não a de 1991.

”Sucessor de Kilamba (Agostinho Neto) excedeu-se nos seus calculismos”

NL - Como definiria o seu desempenho enquanto deputado pelo mesmo partido durante 16 anos consecutivos?

MJCM - Não exerci as funções de deputado por 16 anos mas sim por 8. O que fiz? Inicialmente, coloquei-me ao lado da Igreja Católica e da Sociedade Civil que clamava pelo fim da guerra pois, não achava graça nenhuma em participar activamente numa legislatura caduca, numa altura que se morria e se destruía o país inutilmente. Depois, porque não havia qualquer incompatibilidade de ordem formal, e já convencido que finda a legislatura seria dispensável para as estratégias da actual liderança do meu partido - o MPLA, e, considerando que, para mim, política e actividade partidária não são profissão, como já o referi, voltei às lides académicas o que, por acaso, me têm dado muito prazer e muitas alegrias.

NL - Qual foi o momento mais alto da sua carreira como executivo ao serviço de Angola e o mais amargo?

MJCM - Eu sou um indivíduo basicamente equânime. Aqueles que comigo convivem assim o constatarão. Encontro dificuldades em decompor a vida em momentos altos e momentos baixos ou momentos doces e amargos.
Para mim, a vida é permanentemente um somatório de processos contraditórios, uns a puxar para adiante e outros para manter o status quo ou até a tentar o retrocesso. No meu percurso, sempre me coloquei do lado das correntes do avanço, embora privilegiando estratégias e métodos moderados. Está para nascer alguém que me venha convencer em abandonar esta minha outra divisa: a virtude está no meio - in medio virtus est.

NL - Mobutu esteve durante mais de 30 anos como presidente do Zaire. Enquanto africano como definiria o desempenho daquele Chefe-de-Estado?

MJCM - Não me pronunciarei isoladamente sobre o fenómeno Mobutu (que é, na verdade, um study case), até porque a entrevista já vai muito longa. Eu tenho reflexões esparsas sobre a situação da África, especialmente a subsaariana do período pós - colonial que penso, um dia, sistematizar. Posso, no entanto, adiantar que a minha proposição assenta basicamente na ideia de que fenómenos como o “mobutismo” ou outras formas de apego exclusivo ao poder e às riquezas, por determinadas pessoas e grupos, que tem redundado nas grandes calamidades para as populações e no desprestígio arrepiante desta fatia do mundo, deve-se essencialmente àquilo que o historiador Basil Dadson chama de “ o caminho que não foi percorrido”, no seu livro traduzido em português por “O Fardo do Homem Negro: os efeitos do Estado Nação em África”.
Resumido: a interrupção do desenvolvimento endógeno das comunidades do continente pelo colonialismo e o surgimento, após a II Guerra Mundial, de um nacionalismo moderno, que reivindica apressadamente as independências de territórios multiétnicos e multiculturais (sem a desejada articulação entre a tradição e a modernidade) traçados artificialmente pelos colonialistas, sem transições adequadas. Sei que é um risco falar sobre algo tão complexo em tão poucas palavras. Mas nas condições desta entrevista não tenho senão que assumir este risco.
De resto, penso que nós, os africanos, temos de ter este tipo de abordagem corajosa. Em vez de nos perdermos em descrever o que se passa e apontar medidas paliativas, devíamos surpreender-lhe as causas e tentar encontrar novos caminhos, de forma desdramatizada e, sem perdermos tempo a “chorar sobre o leite derramado”.

NL - Enquanto nacionalista como definiria para os angolanos o desempenho do seu partido depois de 30 anos de governação?

MJCM - Trinta e quatro anos. Muita coisa positiva. Independência: o maior sonho da minha geração. Quantas noites de insónia, por esse evento, que parecia nunca mais chegar?! Mas, depois, faltou a tal parte do caminho não percorrido. Ninguém planeou uma transição adequada. Foi a guerra entre filhos da mesma Pátria.
Mas, a independência seria sempre uma mais-valia e o MPLA acelerou e melhorou muita coisa, sobretudo no domínio da Educação. Apesar dos seus erros de humano que era, Agostinho Neto parecia acelerar o caminho para o fim das desavenças entre filhos de uma mesma Pátria. Parecia estar a arrepiar caminhos de reconciliação, mesmo no seio da sua própria organização, com aquele mea culpa, sui genris, feito quase na hora da partida, sobre a tragédia do fraccionismo.
Antes, em nome de uma nova era que se anunciava, tivera um encontro inacreditável com o arqui-rival Mobuto : fora o início da abertura das portas do reencontro. José Eduardo, jovem de ar tímido mas, homem de rara inteligência toma-lhe o barco depois do adeus. Aí, em todo aquele emaranhado de complexidade interna e internacional as coisas complicaram-se. O novo homem precisava de impor-se numa altura em que era quase vergonhoso um líder não ter de mostrar que uma única voz, que tinha que ser a sua, devia repercutir-se sem ruídos para tudo que fosse canto. É aí que tudo começa a marchar lento. Um anunciado new deal económico que nunca mais se concretizava. Aconteceu a queda do Muro de Berlim, e com ela a acelerarão das reformas políticas e económicas. Mas a guerra voltou sob o manto de uma tragédia maior. O que me parece é que a partir daí, o sucessor de Kilamba começa a exceder-se demasiado nos calculismos, numa altura que já não precisaria de tanta meticulosidade na luta para impor uma liderança que já era um facto. Seria receio do intrépido e exacerbadamente ambicioso e carismático (Jonas) Savimbi? (Agostinho) Neto teria, certamente, condições para seguir outro caminho e em ritmos diferentes.
Mas as leis da vida não perdoam. Não se pode dizer que a paz chegou extemporânea, não. As estradas estão aí a abrir-se a um ritmo alucinante. Há muitas coisas positivas em todos os domínios, mas essa lentidão vivida durante anos a fio parece ter arreigado hábitos e convencimentos que começam a preocupar. Por isso é que o meu amigo me faz esta entrevista. Mas eu estou optimista. Já não deverá haver mais guerra e esses alertas que são recolhidos da sociedade despertarão certamente na liderança atitudes mais consentâneas com os caminhos do progresso, para um povo tão sofrido e desejoso de seguir para novos patamares.

NL - Como vê a actual situação governativa do País?

MJCM - Não vejo problemas na governação em si. O que me preocupa são os grandes rumos para o futuro. Quando podíamos bem seguir exemplos, poucos, mas bons aqui no continente, se não sairmos rapidamente desta situação, estaremos a enveredar por aquilo que se pensa que deve ser o protótipo para os países africanos e que, já se sabe, em alguma altura acaba sempre mal: concentração do poder e da riqueza nas mãos de um grupo minoritário e com aras de patentear ostensivamente tais práticas, através de uma Comunicação Social completamente domesticada, projectando potenciais perturbações para futuros desconhecidos.
Como estas coisas já dificilmente podem ser sustentadas por ditaduras abertas montam-se mecanismos com cheiro a despotismos esclarecidos. Fazem-se coisas aparentemente boas: abrem-se estradas, constroem-se escolas e hospitais às catadupas, até em zonas que por vezes nem alunos ou doentes têm, porque muitas vezes os próprios departamentos governamentais não participam na projecção das obras. E nestas coisas de concentrar tudo na alta liderança quem paga é a nossa capital, Luanda.
Porque em Luanda, não são - o Pepetela vai-me perdoar - as autoridades locais que estão a cometer essas atrocidades que vemos: prédios a brotar por tudo que é canto, se for preciso em cima do mar, mesmo quando já ninguém se consegue mexer nos engarrafamentos tão bem descritos pelo talentoso e popular rapper Yanick. Já não falo do linchamento dos Direitos Humanos, onde famílias inteiras são deslocadas de um dia para outro para locais inóspitos, em nome de uma suposta modernização, coisas que nem o colono fazia com as populações. Onde símbolos históricos como a estátua da Rainha Nzinga são removidas sem grandes explicações. E, já viste, caro Pepe, o que disseram no “Independente”: “que devias calar a boca porque fazes parte de uma das tais comissões nomeadas ad hoc” ? É como o que dizem a mim: “antigo Secretário Geral do M e antigo Primeiro Ministro, deve comer e calar, senão está a cuspir no prato em que foi servido”. Abandonemos este tipo de linguagem e continuemos a construir uma sociedade em conformidade com o novo quadro institucional que adoptamos. Aprendi da minha avó - ainda era eu um menino de dez anos - que a incoerência, especialmente quando é intencional, é a pior das picadas a escolher.

NL - No dia 29 de Janeiro deste ano defendeu, na Universidade Agostinho Neto, a sua tese de mestrado com o título “Direitos Humanos e Mecanismos de Protecção dos Direitos Humanos - As particularidades do Sistema Africano de Protecção dos Direitos Humanos”. Como estamos em termos de protecção de Direitos Humanos?

MJCM - Não se trata de tese de doutoramento mas sim de mestrado. A dissertação, elaborada em sede do Direito Internacional dos Direitos Humanos, não se pretende analisadora da situação concreta dos níveis de protecção dos Direitos Humanos, mas sim, esclarecedora dos mecanismos internos, africanos e universais de protecção. Justamente porque chegara à conclusão intuitiva de que, os abusos impunes contra os Direitos Humanos, em África de uma forma geral, e em Angola em particular, decorrem sobretudo do desconhecimento generalizado da existência e funcionamento desses mecanismos. Por outro lado, afigurou-me necessário - e a dissertação conseguiu alcançar este objectivo - clarificar os fundamentos que legitimam o estabelecimento dos Direitos Humanos em diversos instrumentos jurídicos nacionais, regionais e universais, com ênfase para a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (onde a questão dos direitos dos povos tem um tratamento especial) bem como enunciar quais são esses direitos. A conclusão com que se ficará, lida a dissertação, é que os recursos de protecção existem mas, o problema é a sua utilização por aqueles que se sintam lesados pelos actos e omissões do Estado.
É preciso dar-se início a utilização sistemática desses meios, previstos constitucionalmente e nos instrumentos internacionais a que os Estados Africanos e Angola em particular, estão vinculados. Se assim fosse, no caso concreto de Angola, não nos encontraríamos hoje perante situações como aquelas que referenciamos (e outras não) anteriormente, tais como: o cerceamento (embora subliminar) do Direito à Informação; o cancelamento (também subliminar) do Direito à Manifestação só, materialmente, reconhecido às organizações de apoio ao actual Presidente da República (a que se vai conferindo o carácter de finalidade pública) como a FESA, o Movimento Espontâneo, etc., etc.; a transladação arbitrária e inopinada de populações das suas zonas habituais de residência; as agressões ao património cultural; o congelamento de eleições ou a ocultação das suas datas, sem razões plausíveis; as construções arbitrárias de edifícios, supostamente modernos, sem se atender à necessidade de preservação de um ambiente saudável, sob o ponto de vista físico e mental, como acontecem em Luanda. Só para citar alguns casos, cuja constatação é por demais visível e notória, que não corro qualquer risco de ser processado por difamação contra quem quer que seja, ou de estar equivocado, como qualquer analista ou investigador poderia estar, na condição de humano que sou. Porque se tivesse que aflorar uma série de questões obscuras ou menos claras, o rosário estaria muito longe de parar por aqui.

 

http://www.apostolado-angola.org/articleview.aspx?id=3024