O Criptojudaísmo continua em Belmonte

30-10-2004

O Criptojudaísmo continua em Belmonte

Copyright 1998, David Augusto Canelo

O nosso interesse pelo estudo dos marranos (criptojudeus) verificou-se a partir do ano de 1978, quando éramos estudante da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Nesse tempo, foi o Professor Luís Reis Torgal, prestigiado docente dessa Faculdade, quem nos deu a conhecer um artigo publicado no Jewish Chronicle, revista que ele tinha trazido de Londres. O artigo, publicado a 17 de Março de 1978, tinha o título The Hidden Jews of Belmonte e era um trabalho conjunto assinado por Inácio Steinhardt, Amílcar Paulo e Alec Kesselman.
Embora tivéssemos sempre vivido em Belmonte e termos consciência da existência de judeus que ocultavam as suas práticas religiosas, de termos tido companheiros criptojudeus com quem partilhámos vivências diversas nas escolas e na vida social, nesses tempos da nossa juventude, obviamente, nunca nos passou pela cabeça que o fenómeno do criptojudaísmo pudesse despertar tanto interesse e curiosidade e que por causa disso Belmonte já fosse vila referenciada e conhecida além-fronteiras. Por outro lado, jamais pensámos que um dia, alguns anos depois, teríamos o grato privilégio de conhecer um dos autores do referido artigo, precisamente Inácio Steinhardt, homem fascinante pela sua elevada cultura e simpatia, além de vários professores estrangeiros proeminentes com obra reconhecida mundialmente nos estudos da Inquisição e dos judeus da Península Ibérica.
Quando concluímos a Faculdade, os estudos obrigatórios (embora poucos) sobre a Inquisição e a “questão judaica” já nos tinham feito perceber melhor a problemática da situação marranática ibérica e, de qualquer modo, o mais importante para nós foi que esse tempo nos abriu as portas para o prosseguimento do aprofundamento dos estudos sobre o assunto e as pistas para a procura de cada vez mais novos dados, no fundo para a curiosidade e para a pesquisa. Foi então que começámos a consultar alguns arquivos e mais bibliografia.
Ainda no Verão desse ano de 1978, a nossa curiosidade leva-nos, aquando das nossas férias em Belmonte, a falar com alguns amigos criptojudeus da vila e um original do livro de Samuel Schwarz, Os Cristãos Novos em Portugal no Século XX, que entretanto já tínhamos consultado na Biblioteca da Universidade de Coimbra, é-nos emprestado, dentro de algum secretismo, por um desses amigos criptojudeus. Esse livro tinha uma dedicatória do próprio Samuel Schwarz à família a quem o autor o oferecera.
O Verão de 1978 serviu-nos, então, para os primeiros contactos sérios, digamos assim, com os criptojudeus de Belmonte. Esse grupo de amigos inclusivamente observou-nos aquilo que o livro de Schwarz referia e que ainda, em 1978, se mantinha como práticas secretas e também as orações que ainda se recitavam em Belmonte. Uma investigação mais cuidada sobre o trabalho de Schwarz em Belmonte, realizado entre 1917 e 1925, levou-nos a concluir que apesar do autor ser judeu e por isso ter na altura sido admitido como correligionário no seio da comunidade de Belmonte, isso por si só não facilitou de todo o seu trabalho de recolha dos costumes e indícios litúrgicos dos membros cripto-comunitários, pois sabemos hoje que a grande maioria dos relatos e das orações publicadas por Schwarz foram elementos fornecidos por Francisco Henriques Gabinete, criptojudeu talvez com outra mentalidade e menos fechado ou que teria granjeado grande simpatia por Schwarz.
De qualquer modo, Samuel Schwarz passou por Belmonte tendo deixado um rasto de grande simpatia e consideração por ser um homem educado e culto e que conseguiu granjear amigos também fora da comunidade judaica da vila. Mesmo pessoas católicas ainda vivas recordam-no com elevada consideração o engenheiro que o acaso trouxe por obrigações profissionais para o Concelho de Belmonte por alguns anos.
O nosso regresso a Belmonte dá-se em 1981, onde iniciamos a carreira docente no ensino secundário. A partir dessa altura começámos a ter a ideia firme de que era necessário fazer a actualização do estado da comunidade criptojudaica de Belmonte, passado que era mais de meio século depois do trabalho de Samuel Schwarz. E continuámos a alargar o círculo de amigos criptojudeus e a desenvolver amizades que ainda hoje perduram e que me apraz agora e aqui registar porque se mantêm vivas e duradouras. Umas conquistaram-se, outras apareceram naturalmente, criaram-se empatias. E se isso ainda é hoje uma realidade foi porque sempre actuámos com tacto, respeitando e compreendendo sua maneira de ser, que só quem como nós a sentiu é que sabe como é e não nos coibimos de dizer que, se calhar, temos dificuldade em explicá-la.
Procurámos os elementos litúrgicos que ainda continuavam a observar-se, aqueles que se tinham perdido e os que, já existindo, Schwarz não tinha querido ou conseguido pesquisar.
Quem tem seguido os nossos trabalhos sabe que depois de Schwarz fomos os primeiros que sobre Belmonte conseguimos em Portugal publicar cerca de 60 orações inéditas que Schwarz não publicou em 1925. O próprio Amílcar Paulo, antigo aluno da escola Rosh Pinah de Barros Basto, que desenvolveu excelentes estudos sobre a matéria, principalmente durante as décadas de 60 e de 70, consegue reunir inúmeras orações inéditas mas só da tradição marrana de Trás-os-Montes. Sobre Belmonte nada conseguiu adiantar, limitando-se a seguir o que Schwarz já tinha dito. Amílcar Paulo várias vezes fez referência à dificuldade que teve em pesquisar elementos novos na tradição belmontina, pois era evidente que o mais difícil sempre foi conseguir que os criptojudeus revelassem, dizendo-as, as suas orações, durante séculos transmitidas de geração em geração por via oral e em rigoroso segredo.
Nas actualizações que fizemos em 1985 e 1987 publicámos diversas orações que Schwarz já tinha publicado, mas que ainda nesta altura continuavam a fazer parte daquelas que eram obrigatórias nas assistências religiosas dos criptojudeus, mas 60 orações eram agora trazidas à luz pela primeira vez.
Nunca nos interessámos por assistir, ao vivo, a cerimónias dos criptojudeus. Sempre entendemos, e continuamos ainda hoje com a mesma ideia, de que o segredo dos criptojudeus de Belmonte é em si mesmo um rito dentro dos outros ritos da sua religião e quebrar esse segredo é quebrar um ritual e ao mesmo tempo a continuidade da cultura criptojudia. Nem nunca achámos de grande relevância essa necessidade porque o objecto dos nossos estudos não era a comunidade criptojudaica em si mesma, mas sim uma percepção geral do que era o criptojudaísmo para defendermos, ao lado de outros autores, a posição da existência histórica do criptojudaísmo procurando refutar as teses daqueles que negavam essa realidade, que para nós era evidente. A nossa atenção preocupava-se muito mais, isso sim, com os documentos escritos.
Mas não foram só orações que os criptojudeus de Belmonte nos facultaram. Também nos deram informações sobre os seus costumes, o que pensavam deles próprios e dos seus correligionários, da sua situação, o que pensavam dos outros e quase todas nos foram fornecidas por escrito. Ainda hoje guardo esses manuscritos.
Até aconteceram coisas curiosas. Por exemplo, deram-nos por escrito uma “Oração de santificação pelo vinho e pelo pão”, que se devia rezar na cerimónia do fim da refeição de Sexta-Feira à noite. Sinceramente, como nada nos foi adiantado, pensávamos tratar-se de mais uma oração criptojudia e por isso a publicámos. Ora acontecia que de facto não o era. Foi Inácio Steinhardt quem nos alertou, surpreendido, que tinha sido ele próprio, em 1983 aquando de uma sua visita a Belmonte, que a pedido de uma família criptojudia tinha traduzido o Kiddouch em linguagem muito simples para que eles compreendessem. Tivemos o cuidado de, futuramente, já não publicar mais esse texto. Ficámos por isso também nós espantados quando vimos numa publicação um artigo reproduzir textualmente, sem citação da fonte, essa nossa oração que mais não era que o Kiddouch de Inácio Steinhardt, que de facto não existia nas tradições criptojudias de Belmonte...
Tantos séculos de clandestinidade levaram os criptojudeus a esquecerem, a adulterarem, a inventarem rituais e orações pois não havia sinagogas nem tradições escritas que servissem como guia de regras orientadoras e a força das circunstâncias e a transmissão oral de geração em geração a isso obrigava. A única palavra hebraica que ficou nas suas memórias foi Adonai (Senhor). As orações eram e são todas recitadas em língua portuguesa.
As primeiras publicações que fizemos sobre os criptojudeus de Belmonte foram em 1984 num jornal local. Em 1985 e 1987 publicámos livros de índole global mas onde partes significativas do texto se referiam também aos criptojudeus de Belmonte. Ainda nos recordamos perfeitamente de algumas reacções de criptojudeus. Em 1984, no jornal, publicámos uma fotografia de um criptojudeu que lhe tínhamos tirado no mercado da vila. Logo no dia da saída do jornal, esse criptojudeu procurou-nos para nos dizer que estava metido em grandes sarilhos com outros correligionários seus porque, deduziam, tinha sido ele, ou também ele, quem nos tinha dado as informações então publicadas...
Mas o tempo foi passando e a desocultação da comunidade estava feita. Talvez por isso, por toda a gente saber já que existiam, um grupo de criptojudeus pensou sobre a necessidade da constituição de uma comunidade judaica aberta e sem medo. E foi em 1988 que se fundou a Associação Judaica de Belmonte, procurando o regresso ao judaísmo oficial.
Por essa altura também já Frédéric Brenner conhecia os criptojudeus de Belmonte. Em 1984 Frédéric Brenner, na altura fotógrafo, veio pela primeira vez a Belmonte, acompanhado por Inácio Steinhardt e por uma filha do então Embaixador de Israel em Portugal. Connosco estiveram um dia e verificámos a enorme curiosidade que Frédéric Brenner despertava para com a situação existente em Belmonte.
Desde esse ano de 1984 e até 1989, Frédéric Brenner vinha regularmente a Belmonte sabendo conquistar pouco a pouco e cada vez mais simpatias entre os membros cripto-comunitários. Em 1989, Frédéric Brenner, acompanhado de uma equipa profissional de filmagens, consegue filmar, com o consentimento de uma família, a cerimónia criptojudaica da Páscoa, com as pessoas vestidas de branco, fazendo o pão ázimo, recitando orações e entoando cânticos marcantes do ritual. Outras filmagens se realizaram em Belmonte e em Trás-os-Montes entre 1988-1989 e logo em 1990 o filme Les derniers marranes, resultado desse trabalho produzido por Frédéric Brenner e Stan Neumann, com a preciosa colaboração de Inácio Steinhardt, é passado em algumas estações de televisão europeias, entre as quais um canal de televisão francesa e outro holandês.
O filme chega a Belmonte pouco tempo depois através de uma gravação trazida por um emigrante de Belmonte em França. Nessa altura, num dia à noite, um grupo de criptojudeus dirige-se a nossa casa pedindo-nos, com caras de pouco amigos, a morada de Frédéric Brenner em Paris para, e os termos foram estes, “lhe escreverem convidando-o para um jantar em Belmonte”.
Os criptojudeus estavam claramente decepcionados com Frédéric Brenner, dizendo-nos que achavam que ele os tinha traído pois tinha-lhes dito que o objectivo do filme não era comercial mas sim que se destinava a fins puramente culturais e de um registo dos criptojudeus para figurar para sempre, memorialmente, no Museu da Diáspora de Israel. Outros diziam que os culpados de tudo eram os membros da família que tinha deixado filmar as cerimónias mais secretas, como a da Páscoa...
Temos a certeza que Frédéric Brenner sabia que isto podia acontecer, pois escreveu: “Je voudrais rendre hommage à Emília qui, seule contre tous, malgré les pressions et les menaces du groupe, a eu le courage de m’accorder sa confiance et de me livrer son secret. Peut-être partageait-elle comme moi cette intuition que les marranes étaient au bout du chemin et qu’il fallait arracher à l’oubli les traces de cette mémoire encore vivante. Peut-être savait-elle que par elle et à travers elle, cette mémoire vivrait”
É evidente que sabiam que nós costumávamos falar com Frédéric Brenner. Numa sexta-feira de Maio de 1989, quando chegámos a nossa casa encontrámos a seguinte mensagem escrita deixada por Frédéric Brenner: “Mon Cher David: Je te serais infiniment reconnaissant de bien vouloir emmener avec toi Moises Abrantes de Fundão à la cérémonie qui aura lieu dimanche à la Synagoge de Porto. Je compte absolument avec toi. Merci d’avance. Moises Abrantes attend ton coup de téléphone pour que vous fixiez rendez-vous. A Dimanche. Amities. Frédéric Brenner.”
Com Moises Abrantes, antigo estudante do Instituto Rosh Pinah de Barros Basto, dirigimo-nos ao Porto nesse domingo e na Sinagoga Kadoorie Mekor H’aim Moises Abrantes, como dissemos anteriormente, ajudou a oficiar numa cerimónia que foi filmada pela equipa de Fréderic Brenner. Algumas depoimentos também se registaram. O objectivo era recolher imagens para recordar a obra do resgate, com pessoas ainda vivas e que duma forma ou doutra tinham colaborado nessa movimentação da tentativa da restauração do judaísmo em Portugal.
O trabalho de Frédéric Brenner não se ficou só pelas filmagens pois também editou em 1992, em França, com base no filme, o livro Marranes, (Éditions de la Différence) incluindo fotografias, algumas de imagens aproveitadas do filme, dos criptojudeus e da cerimónia da Páscoa. Para lá de Frédéric Brenner que escreve Exilés de L’Exil, neste livro participam também Yosef Hayim Yerushalmi (Les derniers marranes, le temps, la peur, la mémoire), Inácio Steinhardt (Prières) e Nicole Zand, tendo este último transcrito para o livro as vozes dos criptojudeus entrevistados no filme (Voix de Trás-os-Montes et de Beira). Já em Dezembro de 1989, Nicole Zand tinha publicado um artigo no jornal francês Le Monde que intitulou Les derniers marranes perspectivando e publicitando o filme que seria editado pela Sept, e informando da preparação do livro com as fotos. Nicole Zand referia algumas palavras que Frédéric Brenner tinha afirmado aquando da apresentação do seu filme então intitulado provisoriamente Le dernier seder marrane, no trigésimo colóquio dos intelectuais judeus de língua francesa, que tinha tido lugar nesse mês em França e no qual “un étrange film a plongé tous ses spectateurs dans la stupéfaction”. Afirmava então Brenner: “Comment un individu parvient-il à mener une “double vie” sans détruire sa personnalité? Comment, et c’est peut-être là le fait le plus extraordinaire, parvient-il à transmettre à ses enfants cette fidélite ancestrale aussi contraignante et périlleuse, alors que toute tradition de connaissance, d’étude juive a depuis longtemps disparu et que, parallèlement, l’enfant, depuis son plus jeune âge, suit les cours de catéchisme, et il vit le fait d’être marrane dans la honte?”
Não há dúvida que o trabalho de Frédéric Brenner é o melhor que desde sempre se fez sobre os criptojudeus pela razão de que as imagens não enganam, mostrando aspectos que a escrita teria sempre dificuldade em descrever. Uma imagem vale sempre mais que muitas palavras... O documentário fílmico é de uma profunda sensibilidade e penetrante, que revela a luta e o combate dos criptojudeus por uma sobrevivência, através de uma dinâmica e percurso histórico verdadeiramente impressionantes. Depois disto, Frédéric Brenner ainda não voltou a Belmonte.
Em Novembro de 1987 o Rabi Joshua Stampfer, da Congregation Neveh Shalom de Portland dos Estados Unidos da América, celebra em Belmonte no Salão Nobre da Câmara Municipal, de forma pública, a primeira cerimónia religiosa judaica, 500 anos depois da conversão forçada, numa reunião em que participam cerca de 50 criptojudeus. Tratou-se da celebração de uma entrada de Shabbat.
Joshua Stampfer veio pela primeira vez a Belmonte em 1985 então acompanhado por Robert Roy Reed, um antropólogo americano que, movido pela leitura de um pequeno artigo sobre os marranos publicado na revista Time em 11 de Abril de 1977, tinha permanecido dois anos (1983 e 1984) em Belmonte com o firme propósito inicial de fazer um estudo sobre os criptojudeus. Devido às dificuldades que encontrou por ver que as portas dos criptojudeus se lhe fecharam, Robert Roy Reed resolveu fazer estudos sobre outras temáticas em Belmonte.
Das impressões destas suas duas primeiras visitas a Belmonte, Joshua Stampfer publicou, no Hadassah Magazine, em 1988, o artigo Report from Belmonte, Journeys Physical and Spiritual.
Entretanto estreitavam-se os laços com os meios judaicos oficiais. Ajudas nacionais e internacionais pareciam poder existir. Em fins de Maio de 1988, a comunidade recebe a visita de cerca de 50 judeus da comunidade de Lisboa para celebrarem um Shabatt em Belmonte. A organização deste encontro é feita pelo Centro Israelita de Portugal e pela União de Estudantes Judaicos de Portugal em cooperação com a Associação Judaica de Belmonte. Durante uma conferência que nós próprios proferíamos sobre os judeus secretos, integrada no programa, um familiar do capitão Barros Basto, o Dr. Max Azancot, apela à importância da necessidade de se fazer o ressurgimento em Belmonte da Obra do Resgate. Havia cada vez mais incentivos para um renovado regresso ao judaísmo oficial dos criptojudeus de Belmonte.
Em Janeiro de 1989 a Associação Judaica de Belmonte passa oficialmente a chamar-se Comunidade Judaica de Belmonte com vários objectivos entre os quais a continuação da promoção do regresso dos criptojudeus ao judaísmo. Nesse ano alguns criptojudeus são circuncidados e pela primeira vez após a conversão forçada de 1496 celebra-se em Belmonte um casamento judaico.
Constitui-se uma sinagoga improvisada e em 1990 um Rabi de Israel vem para Belmonte. Três anos mais tarde, um outro Rabi substitui o primeiro. O interesse mediático sobre os judeus de Belmonte cresce. A imprensa escrita, a televisão e a rádio vêm com regularidade a Belmonte para fazer reportagens. As visitas de judeus estrangeiros são também frequentes.
Mas nem todos os criptojudeus aderiram a este novo movimento do retorno. Longe disso. Hoje, em 1998, podemos dizer com a máxima segurança, que um número significativo de criptojudeus (uma grande maioria ainda, segundo as palavras dos próprios) não seguiu o caminho do recente resgate.
No desfecho do filme de Frédéric Brenner sobre os marrranos sobrevaloriza-se o conflito de consciência interior com que hoje os criptojudeus de Belmonte se debatem, ou seja, se devem continuar com a religião que herdaram, o criptojudaísmo, ou se devem seguir o caminho do judaísmo, da sinagoga. O novo e o velho estão hoje, de novo, como nos anos 20 e 30, em conflito. Emília, critojudia, diz estas palavras marcáveis: “Eu não abandono a minha religião por nada deste mundo... porque é a minha fé...é muito forte. A minha religião é mais forte do que a do cristão ou de outra religião qualquer. Com a moderna eu não vou. Eu pratico a que os meus pais me ensinaram... As rezas são diferentes, eu não as conheço, eu rezo aquelas que os meus pais me ensinaram. Os jovens devem seguir com as modernas. Nós sempre rezámos em casa. Para mim as novas rezas não são como as nossas. Nós temos as nossas rezas e eles (na sinagoga) têm as deles” .
Inequívoca afirmação de que os rituais criptojudaicos devem manter-se em Belmonte. As diferenças continuam estabelecidas. Como aconteceu há 60 anos com o movimento da Obra do Resgate impulsionado por Artur Carlos de Barros Basto, o criptojudaísmo continua ainda hoje a escorar-se como a religião consolidada dos critojudeus, a religião que lhes parece tranquilizar as exigências da sua existência.
Há 60 anos a Obra do Resgate não abalou minimamente, quanto ao essencial da questão, a estrutura criptojudia existente em Belmonte. Samuel Schwarz, afinal, não conseguiu influenciar as gentes para o retorno, nem sequer para as ligar efectivamente à sinagoga da Covilhã; os cinco estudantes do Instituto Rosh Pinah do Porto que de Belmonte foram com objectivos de primeiro aprenderem e depois poderem ensinar os seus correligionários não teve qualquer resultado, tendo acabado os jovens por seguir outros destinos não mais regressando a Belmonte. A visita que Barros Basto fez a Belmonte também parece não ter provocado grandes entusiasmos para o regresso ao judaísmo. E José Pereira de Sousa, o homem que tinha ficado incumbido de dinamizar o retorno, achou-se demasiado só ou os outros o consideraram demasiado distante.
A recente e actual tentativa do retorno em Belmonte é também um trabalho que continua em grande medida adiado porque para uma maioria o criptojudaísmo prevalece sóbrio e, claro, escondido. Como sempre!
O criptojudaísmo é a sua religião, transportando em si uma fé inabalável por parte daqueles que a observam. Em muitas famílias, o segredo continua inflexível, perpetuando-se as tradições culturais e cultuais herdadas dos antepassados em muitos costumes, em muitos ritos, em muitas orações. É certo que hoje, por exemplo, já não se baptizam e não se casam pela Igreja, como antes faziam dentro da tradição da duplicidade religiosa criptojudaica, mas existem ritos, as orações e vários outros costumes religiosos que se mantêm essenciais e na linha tradicional e condicional familiar do quadro do marranismo português. Para muitos criptojudeus o criptojudaísmo é o autêntico judaísmo.
Na verdade e à excepção de Belmonte, os núcleos de criptojudeus foram deixando de existir nas vilas e aldeias onde ainda na primeira metade deste século XX existiam. Algumas famílias isoladas, aqui e além, conservariam práticas criptojudias, mas só isso.
A última comunidade de criptojudeus, descendentes dos conversos portugueses do fim do século XV, permaneceu em Belmonte. Aqui a cultura criptojudia não tolerou mudanças quanto ao essencial. A educação continuou de pais para filhos, os valores familiares foram respeitados ao longo de um tempo muito extenso.
Em Belmonte não houve mobilidade geográfica dos membros cripto-comunitários, não houve transformações económicas radicais justificativas para alterações. A estabilidade do calendário festivo dentro da linha marrana foi uma realidade. Os rituais perpetuaram-se da maneira como sempre se fizeram. Houve uma grande imutabilidade da tradição, passada de geração em geração ao longo dos séculos.
Uma fé imensa naquilo que foi e é a sua herança religiosa e cultural, constituiu o núcleo central que permitiu, até hoje, e isto ao longo de quase 500 anos, a sua existência, enquanto comunidade, com uma identidade específica e verdadeiramente única no mundo. Para além dos séculos, das perseguições da Inquisição e das diversas animosidades, conservaram uma fé inquebrantável no tempo. O criptojudaísmo é ainda, em 1998, uma realidade distinta em Belmonte. Apesar de tudo.

Fonte: www.arcor.de/home/redir.php/emf-dsl-1