30-06-2008A Epopeia da última flor Lácio Filomena Embaló24.06.2008 Ao embarcar com os marinheiros nas caravelas, a Última flor do Lácio[i] não imaginava a aventura que iniciava. Atravessou oceanos, dobrou cabos, venceu tempestades e batalhas marítimas, aportou continentes longínquos, subiu rios, desceu colinas, visitou povos, negociou, cristianizou, declarou guerras, ocupou, fez casamentos, gerou filhos e criou identidades!
Ela, a Língua de Camões, que, ao atravessar séculos e continentes, também se tornou na de Machado de Assis, Alda do Espírito Santo, Agostinho Neto, José Craveirinha, Adulai Silá, Baltazar Lopes e Luís Cardoso.
No seu movimento centrífugo, impôs-se a outras culturas que, paradoxalmente, dela se apropriaram fazendo-a sua ou criando outras a partir dela e de idiomas próprios. A adopção da língua portuguesa como língua oficial nos países outrora colonizados por Portugal e os crioulos de base lexical portuguesas, espalhados um pouco por todo o mundo, denotam esses factos.
Porém, o português não saiu ileso dessas convivências. Ao querer impor-se como língua do outro, este impulsionou-lhe o seu cunho pessoal, introduzindo, (primeiramente ao nível da oralidade, por falantes pouco escolarizados e, em seguida, ao nível da escrita, com o desenvolvimento das literaturas desses países) mudanças da fonética e da sintaxe e inovações lexicais e morfológicas. A evolução da literatura dos países africanos de língua oficial portuguesa põe bem em evidência esses fenómenos que autores como, por exemplo, Mia Couto e Luandino Vieira exploram nas suas obras. O português do Brasil, com norma própria, é, poderíamos dizer, um exemplo mais acabado da apropriação desse idioma por povos cultural e geograficamente distantes.
A língua portuguesa ao dar-se enriqueceu culturas pela abertura que lhes proporcionou a novos universos do conhecimento, mas saiu também enriquecida dessa dádiva, por ter recebido desses povos contributos que a tornaram numa língua de convergência de povos falantes de outros idiomas maternos e que através da qual edificaram identidades e nações.
Hoje o português reúne cerca de 220 milhões de cidadãos dos 8 Estados[ii] da CPLP[iii] que a utilizam como língua de comunicação comum. Esta partilha multicontinental fez com que este idioma se impusesse também como língua de comunicação internacional, tornando-se língua oficial e de trabalho de organizações internacionais e regionais.
O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que aqui saudamos com a sua utilização, foi assinado por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe em Lisboa, a 16 de Dezembro de 1990, tendo Timor-Leste aderido ao mesmo em 2004. Este acordo estabelece uma ortografia única oficial a ser utilizada por todos estes países. Com a sua ratificação por quatro dos países signatários (Brasil, Cabo Verde, Portugal e São Tomé e Príncipe) foi dado um primeiro passo que deverá conduzir à criação das condições práticas para a sua aplicação, na medida em que ele implica, entre outras, a sua divulgação e consequências de ordem editorial e financeira.
Determinando uma grafia única e pondo fim à dualidade existente entre o “português do Brasil” e o “português europeu”, com incidências nefastas, no nosso entender, na promoção e aprendizagem deste idioma, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa constitui sem dúvida uma passagem obrigatória, incontornável, para a preservação da língua nos novos países que a adotaram e onde ela coabita com várias outras línguas maternas. Outrossim, como elemento de coesão, ele contribuirá não só para a afirmação do português como língua internacional, mas também para o reforço da cooperação entre os Estados membros da CPLP, em particular nas áreas educacional e editorial.
E, assim, num movimento centrípeto, em que os regionalismos ter-se-ão universalizado, a língua portuguesa, viajante universal, regressará una e plena na sua diversidade, mas sempre em perpétua evolução, traduzindo a morabeza[iv] da convivência dos seus povos e contando os mujimbos[v] das suas gentes. Uma língua que relatará as conversas das banjas[vi] dos homens grandes[vii], cachimbando[viii] sobre a vida da tabanca[ix]. A língua que o poeta escolherá para cantar o gingar da moçoila enquanto a brisa leve-leve[x] lhe afaga os cabelos...
Então, aí sim, a Última Flor do Lácio será plenamente, para os seus povos falantes, a Pátria definida por Pessoa... [i] Olavo Bilac (1865-1918), poeta brasileiro e membro fundador da Academia Brasileira de Letras, no seu poema A Língua Portuguesa, designa a língua portuguesa, idioma neolatino, como sendo a “última flor do Lácio”. O Lácio (em latim, Latium; em italiano, Lazio) é uma região da Itália central cuja capital é Roma. O seu nome, originalmente Latium, remete aos latinos, povo do qual os romanos descendem e cujo idioma, o latim, tornou-se a língua formal do Império Romano, tendo sido amplamente difundido nos territórios sob o seu domínio. De enorme importância histórica e cultural, foi o local onde Roma foi fundada. (www.wikipedia.org) [ii] Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. [iii] Comunidade dos Países de Língua Portuguesa [iv] Amabilidade (Cabo Verde) [v] Boatos (Angola) [vi] Conselho, assembleia (Moçambique) [vii] Idosos (Guiné-Bissau) [viii] Reflectindo (Brasil) [ix] Aldeia (Guiné-Bissau) [x] Devagarinho (S. Tomé e Príncipe) |