18-09-2004 Informativo Sebastião Coelho
Seguindo o exemplo do saudoso jornalista angolano Sebastião Coelho, neste espaço divulgamos assuntos relacionados com a África, principalmente a de expressão portuguesa e com as culturas Bantu
O processo de formação de novas nações no contexto africano
Daniel Cunha*
Prévia.
No contexto dos Estados africanos multiétnicos, durante os processos de luta pela descolonização, a idéia de "nação", antes limitada a cada grupo local, passa a abarcar a totalidade das populações de cada um desses Estados.
Tal processo se dá a partir de uma mobilização conjunta de vários grupos reunidos em torno de um único ideal: a independência perante o colonizador europeu. Se antes a resistência armada contra o jugo colonial era fragmentária e restrita a uma região localizada no interior de uma colônia, e baseada nas estruturas tradicionais pertencentes a um determinado grupo étnico -- e por isso a oposição era mais facilmente reprimida --, depois os distintos grupos rebelados passam a convergir em torno de uma resistência unitária -- e então mais eficiente -- à ocupação estrangeira.
Nação é, portanto, um conceito tido como voluntarístico [1] : se por um lado o grupo étnico tem como referência as suas tradições e o passado (a ancestralidade do grupo), por outro lado o sentimento de nacionalidade tem um conteúdo volitivo, isto é, ligado à vontade e à consciência de viver em comum, e a um projeto histórico e político voltado para o futuro, para o anseio pela consolidação de um novo poder unificado.
Cabe à intelectualidade urbana desenraizada e ideologicamente engajada o papel de teorizadora dessa ulterior unificação de tais focos de resistência anteriormente isolados. Reunidos no partido político, os intelectuais comprometidos com a criação de um projeto político unitário preconizam a renúncia à ideologia colonial, e a substituição desta por uma nova ideologia "nacionalitária" [2] .
São exemplos dessa intelligentsia os membros de uma pequena burguesia autóctone pertencente a várias cidades das colônias portuguesas, membros estes situados em torno do Centro de Estudos Africanos (criado em 1951) e posteriormente da Casa de Estudantes do Império. Alguns desses associados viriam a ser os líderes da independência de seus países: Agostinho Neto, de Angola; e Amílcar Cabral, de Cabo Verde e da Guiné-Bissau.
Uma vez criadas as condições teóricas para a concretização de uma frente única de resistência ao colonialismo, as nações (por exemplo, a quimbundu, a cuanhama, a quioco, em Angola) que já foram forçadas a estabelecer uma relação mais íntima e constante entre si em razão da pressão e da submissão de um colonizador em comum, e que por isso mesmo tenderão a formar uma nação mais ampla (por exemplo, a nação angolana), doravante irão intensificar o intercâmbio com base na língua do próprio colonizador, a qual, paradoxalmente, servirá como a língua geral de resistência. Consta que Eduardo Mondlane, o primeiro presidente da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), passou por Lisboa, antes de ir estudar nos Estados Unidos, apenas por uma questão estratégica e consciente: teria assim um melhor domínio da língua do colonizador, e poderia ter um melhor diálogo mesmo com as autoridades portuguesas [3] . A nova nação será não só ato de vontade coletiva inspirada em sentimentos históricos, mas também fruto de uma fatalidade, a da mútua submissão ao mesmo administrador colonial.
Com a contestação baseada nas associações culturais (como a Casa dos Estudantes do Império) tornada ilegal, o engajamento dos intelectuais rebeldes tornar-se-á mais focalizado nas operações político-militares de guerrilha dos seus respectivos partidos. É no contexto do combate que os milicianos sairão de sua vida local e entrarão em contato com outros grupos étnicos reunidos num mesmo objetivo comum. O laço étnico, assim, desaparece quando o combate é levado a cabo por uma milícia etnicamente heterogênea e alguns combatentes combatem em territórios que não os seus de origem.
Historicamente, os movimentos de libertação mais tribalistas, como a FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola), cujas atividades limitavam-se apenas ao norte de Angola, nos territórios dos bakongos, enfraqueceram-se drasticamente ou até foram extintos, diferentemente dos movimentos não tribalistas, como é o caso do MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola), hoje mantido no poder. Em Moçambique, também a postura não-tribalista da Frelimo preponderou sobre o faccionismo étnico de Uria Simango, um dos líderes daquela organização, que morreu assassinado após a independência.
Na constante movimentação das guerrilhas no âmbito de todo o território colonial, também a gerontocracia baseada nas hierarquias tradicionais perde sua rigidez com o exercício do comando técnico-militar dos mais novos. O poder efetivo, durante as investidas guerrilheiras e também após a consolidação dos partidos subversivos no comando do novo país independente, será então exercido por esses mais novos, e assim haverá um rejuvenecimento da sociedade.
A contestação à consciência mítica-utópica do regime ditatorial, comum a todos os movimentos nacionalistas das colônias portuguesas, fornece as bases para a criação de uma nova espécie de ideologia -- a ideologia “nacionalitária” --, a qual por sua vez fornecerá os fundamentos para a promulgação das novas Constituições. Em Angola, a carta programática do MPLA, lançada no Congo, em 1961, sofrerá importantes modificações após a tomada do poder daquele movimento. Se antes seus arautos defendiam a perspectiva federalista na nova nação (conforme o item quarto do programa de 1961), já após a independência (1975) muda-se de posição no ato da promulgação da Lei Constitucional da República Popular de Angola, e defende-se, no Artigo 4° do Título 1°, a seguinte posição: “A República Popular de Angola é um Estado unitário [grifo meu] e indivisível (...)” [4] . Esta postura – ou ainda, “barreira jurídica” – levará alguns grupos tribalistas e autonomistas a requerer, pela força ou não, ou a independência – como é o caso do enclave de Cabinda --, ou a garantia de alternância no poder e do fim da alegada opressão de um grupo étnico – como é o caso da UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola) e do MPSO (Movimento em Prol da Sobrevivência dos Ovimbundu), ambos identificados com a etnia ovimbundu.
Sob o regime do partido único, que propunha antes da independência a superação dos conflitos étnicos, o tribalismo adquire o direito de cidade [5] . Terminadas as guerras antigovernamentais, não é certo que a crescente onda de democratização no continente africano vá remediar o tribalismo, e talvez até alargue a sua influência, caso os partidos políticos ascendentes procedam a um recrutamento étnico ou regionalista dos seus quadros. Nota-se ainda hoje (como no caso de Angola, desde 2002, com o fim da guerra) que há uma fase de transição entre dois estágios de desenvolvimento político, a consolidação do poder (que Amselle ilustra como a implementação de uma espécie de contrato social à maneira do pacto teorizado pelos jusnaturalistas, como Hobbes, Locke e Rousseau) e a reestruturação da sociedade com base num aparato burocrático que engendre o desenvolvimento econômico. O alcance da “dominação racional” do Estado burocrático fica restrito a apenas algumas áreas do território, principalmente os grandes – e a cada dia mais hipertrofiados – centros urbanos. Nas áreas mais afastadas dos domínios racionais-legais, o tradicionalismo mantido por certo pragmatismo, o tribalismo e até mesmo a liderança carismática desdenham os formalismos ideológicos e mantêm estratégias de conservação de um “etnonacionalismo no interior das fronteiras étnicas” [6] , contraposto à já citada ideologia nacionalitária. Assim, é mantido o permanente conflito entre a tradição e a modernidade, e é atualizado o antagonismo entre a forma colonial do estado e a distribuição colonial das etnias [7] .
D.C.
SP – MMIV
Bibliografia:
Amselle, Jean-Loup. "Etnicidade e identidade em África”. In Cordelier, Serge (coord.) Nações e nacinalismos. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1998, p. 75-80.
Serrano, Carlos. "O processo de constituição dos Estados nacionais e as questões culturais". In Seminários FUNDAP: Países africanos de língua oficial portuguesa. São Paulo, FUNDAP, 1992.
Bonavides, Paulo. Ciência política. São Paulo, Malheiros, 1998. (Especificamente, o capítulo "A nação", onde menciona o teor volunarístico de nação, presente no pensamento político francês e italiano, notadamente o de Ernest Renan e o de Mancini.)
Matsinhe, Cristiano. Biografias e heróis no imaginário nacionalista moçambicano. In Fry, Peter (org.). Moçambique, ensaios. Rio de Janeiro, UFRJ, 2001.
Serrano, Carlos. Etnicidade, mobilização e recrutamento da luta de libertação de Angola. In Neves, Fernando Santos (org.). A globalização societal contemporânea e o espaço lusófono: mitideologias, realidades e potencialidades. Lisboa, Edições Universitárias Lusófonas, 2000.
[1] Bonavides, p. 82, 1998.
[2] Serrano, p. 88, 1992.
[3] Matsinhe, p. 204, 2001.
[4] Cf. Serrano, p. 98, 1992.
[5] Amselle, p. 80, 1998.
[6] Serrano, p.175, 2001.
[7] Amselle, p. 80, 1998.
Das motivações das expedições de exploração e como eram feitas; e de como foram os primeiros contatos dos europeus com africanos e americanos
Pequeno estudo entre a história e a antropologia
(Prévia)
Daniel Cunha*
As motivações para as expedições marítimas que se intensificaram no final do século XV deitam suas raízes na Baixa Idade Média européia, quando ampliaram-se gradualmente as trocas comerciais entre os ascendentes Estados modernos europeus. Já neste período de profunda transformação cultural, política e econômica, genoveses, maiorquinos, catalães e depois portugueses, andaluzes, bretões e flamengos lançavam-se aos mares para comercializarem seus produtos entre si.
Em Portugal, Estado feudal independente desde 1139 e consolidado como Estado soberano desde 1249 -- após a anexação da província do Algarve aos chamados "mouros" --, a atenção de seus habitantes volta-se para o norte da África e para o mundo desconhecido poucos decênios após a decisiva batalha de Aljubarrota, em 1385, contra o reino de Castela, cujos senhores requeriam a anexação do reino português em razão da morte de seu último soberano legítimo da família real de Borgonha. O desejo de manutenção da independência com armas e dinheiro, através da busca de novas oportunidades fora da Península Ibérica, já demonstrava-se com a campanha vitoriosa para a conquista de Ceuta, no norte da África, em 1415, e a posterior obtenção de territórios circundantes, onde desenvolver-se-ia o cultivo da cana-de-açúcar.
A localização geográfica de Portugal, no extremo sudoeste da Europa e de frente para o Atlântico, somada ao fervor patriótico (antagônico das pretensões políticas castelhanas) e sobretudo cristão (em oposição ao credo maometano dos "mouros", antigos e permanentes rivais): não somente estes fatores estimularam o movimento para fora da Europa, mas também o espírito empreendedor de setores da nobreza portuguesa, representados pela figura do infante Dom Henrique, o irmão do rei que, até o ano de sua morte, em 1460, financiou e inspirou os exploradores portugueses. A expansão marítima foi, portanto, uma iniciativa de caráter institucional – mas nem sempre –, marcada pelo pacto compartilhado entre a nobreza feudal e a burguesia mercantil, associada a poderosas famílias de mercadores flamengos e italianos, conforme muito bem nos mostram os estudos de Paulo Mercadante, em A consciência conservadora do Brasil, e de Raymundo Faoro, em Os donos do poder.
Levadas a cabo por essa elite heterogênea, as incursões mais diretas litoral africano requeriam um prévio conhecimento de suas realidades locais e de suas gentes, uma condição já facilitada devido ao longo período de convívio e miscigenação entre os cristãos peninsulares e os árabes e berberes, característicos habitantes de uma vasta extensão do norte africano, então conhecida como Bilad al Sudan, expressão árabe que significa, "terra dos negros".
À captura de Ceuta seguiram-se a colonização da ilha da Madeira, desde 1418 -- onde seriam cultivados cereais e a cana-de-açúcar, para reforçar os recursos de uma nação cercada --, e do arquipélago dos Açores, desde 1427. Ao povoarem gradualmente esses locais e toda a costa marroquina, com feitorias e fortes, e ao cruzarem o cabo Bojador (na atual região do Saara Ocidental), os portugueses adestraram-se na navegação oceânica e finalmente ingressaram num mundo de comércio intenso, profundamente islamizado, e de poderosos reinos, como Timbuctu (Império Mali), conhecido dos europeus desde o século anterior, quando o seu abastado senhor, o muçulmano Mansa Musa, e sua interminável caravana carregada de ouro surpreenderam todo o mundo islâmico -- além de alguns cronistas europeus, notadamente Leo Africanus -- quando passaram pelo Cairo rumo a Meca em peregrinação.
Seriam então estabelecidos outros e inúmeros fortes e feitorias (como a de Arguim, em 1445, importante para a eliminação da intermediação berbere no comércio do ouro sudanês ou malinês), não só nas costas litorâneas, mas também ao longo das margens dos grandes rios, como o rio Zaire, explorado por Diogo Cão em 1482, e que virá a ser a via de acesso para a confederação de Lunda (atualmente no interior de Angola e do Congo).
A forte presença do islamismo, alternada com a do animismo, representava um obstáculo aos interesses dos agressivos exploradores peninsulares, ferrenhamente cristãos, e ainda imersos num espírito de cruzada. Mas apesar da dissonância religiosa, os portugueses passaram a adotar, entre outras, uma prática comum – e um lucrativo negócio – entre os árabes, berberes e demais autóctones africanos: o tráfico de escravos, iniciado em 1441. Este negócio, somado ao da troca de armas e bens manufaturados europeus por ouro sudanês (a partir da "Costa do Ouro"), marfim da "Costa do Marfim" e pimenta da "Costa da Malagueta", além do uso da mão-de-obra escrava para a produção de açúcar – o qual seria a espinha dorsal do subseqüente processo de descobertas –, também motivariam Castela (e posteriormente outros Estados) a conduzir as suas próprias expedições de exploração, o que levou à luta entre castelhanos e portugueses pelo controle da costa da Guiné, entre 1474 e 1481. A partir de então, a Igreja, interessada no enfraquecimento dos "mouros" na África, passou a exercer o papel de mediadora entre os dois reinos conflitantes, e, ao dividir o mundo entre ambos numa série de tratados e bulas papais, acentuou o cunho religioso das expedições. Seria então reconhecida por Roma a primazia lusitana sobre as terras descobertas, desde que os portugueses levassem consigo missionários. Em A construção do escravismo no Novo Mundo, Robin Blackburn lembra que a bula Romanus Pontifex, de 1445, declarava que os cativos aprisionados poderiam ser vendidos, desde que houvesse uma tentativa de sua conversão ao cristianismo.
Nesses contatos com os diversos povos africanos, e posteriormente com os americanos, os homens ibéricos sempre seriam vistos não só como inimigos em potencial, mas também como bárbaros. Some-se a isso o pasmo que sentiram os nativos diante de enormes caravelas e de marinheiros barbudos e de pele clara e corroída pelo beribéri e pelo escorbuto ou "mal-de-angola". A animosidade expressa pelos habitantes de uma região era contrabalançada pela amistosidade dos rivais daqueles outros, como a demonstrada por exemplo pelo príncipe jalofo (do atual Senegal) chamado Benoim, que chegou a viajar a Portugal para pedir apoio contra seu inimigo político, e retornou cristão para África; ou pelo generoso Sultão de Malindi, na costa do atual Quênia, frente à tripulação de Vasco da Gama, que lá esteve em 1498, conforme o registro de Camões, n'Os Lusídadas. Seriam, pois, alternados a invasão, o saque, a pilhagem e o massacre, em algumas situações, com outras menos agressivas, marcadas pelo intercâmbio comercial e cultural. (Ou seja, próximo à feitoria haveria sempre um forte ou fortaleza militar.)
Franz Boas, em Race, Language and Culture, lembra que entre os Fan do Baixo Congo ainda havia, no século XIX, estranhas imitações da arma conhecida como besta, produzidas pelos próprios nativos desde sua introdução pelos portugueses ainda no século XV. Já nesta época, os europeus não introduziram somente seus produtos materiais, mas também a sua religião. Serge Gruzinski, em A passagem do século, assinala que, em 1491, o Manicongo (rei do Congo) converteu-se ao cristianismo, assim como ocorrera com o jalofo Benoim, mas apenas seu filho, batizado como Afonso, persistiu na nova fé. Os interesses políticos e econômicos de ambos os lados – congolês e português – iria então corroborar uma aliança também religiosa.
O hábito dos portugueses e dos espanhóis (muitas vezes chefiados por genoveses, como Colombo, ou florentinos, como Vespúcio) de deixarem os chamados degredados em terras descobertas, para que descobrissem algo mais sobre o local, será repetido nos contatos da frota de Cabral com o litoral brasileiro, em 1500. Quando não eram mortos pelos nativos, os degredados e responsáveis pelas feitorias praticavam o escambo e armazenavam os bens adquiridos (no caso americano, de início, os bens eram sobretudo madeira, escravos e animais silvestres).
[Continua]
D.C.
SP - MMIV
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