21-02-2008 A saga de um corvino I Maria Eduarda Fagundes
Maria Eduarda Fagundes *
Capitulo I
Ilha do Corvo
Do alto da rocha José observava o horizonte, àquela hora da tarde de um vermelho sanguíneo. Respirava lenta e profundamente, como se quisesse se embriagar com o ar fresco do mar. O vai e vem das águas parecia chamá-lo, convidando-o para aventuras e conquistas nunca antes imaginadas. Era jovem e sentia-se oprimido pela pequenez da ilha. Cabelos e olhos castanhos, um bigode claro e ralo sobre uma boca vermelha e fina. Tez queimada da lida na lavoura e na pesca, de estatura média-alta, figura um tanto quanto encorpada. Introvertido, na “caixola ”as idéias ferviam. Sonhava com as maravilhas que existiam para além daquela montanha-vulcão onde nasceu e vivia.
Planejava partir. E ainda mais agora que a Coroa o chamava para servir, Ela que nunca se lembrava deles, os corvinos, a não ser na hora da cobrança dos pesados impostos, tirando-lhes os minguados réis e o trigo, obrigando-os a comer muitas vezes pão de junça, por falta de cereal na ilha. Pensava: Talvez até fosse enviado para as terras das “Áfricas,“ para batalhar, sem saber porquê, ou para morrer de alguma doença palustre, sozinho, longe da família e dos amigos. Essa visão do futuro próximo o assombrava. Pediu ao pai, proprietário de uma pequena parcela de terra, que fizesse um sacrifício e o ajudasse a pagar a remissão do serviço militar, a dinheiro. Seu tio, que emigrara e trabalhava num baleeiro americano, também o ajudaria com algumas “águias” (moedas americanas com valor de 20 dólares). Era assim que o governo fazia vista grossa ao debandar dos ilhéus, enquanto as receitas adicionais açorianas engrossavam os cofres do rei, na segunda metade do século XIX.
Tomou o rumo de casa. Passou na Igrejinha da Nossa Senhora dos Milagres, orou, pediu proteção e a passos largos, decidido, subiu a Rua das Pedras até a sua morada, umas das casas que se dispunham lado a lado, quase geminadas, margeando o caminho. No Corvo, as portas não tinham fechaduras, só tramelas, o metal era raro, só aparecia de vez enquanto com alguém que chegava à ilha. Avisaria aos pais da sua decisão, na próxima oportunidade, se evadiria.
Naquele espaço de pouco mais de 6 km de extensão por 4 km de largura, o mais longínquo Concelho do reino, sobreviviam umas 800 almas. Todos eram conhecidos e, em algum momento no tempo, aparentados. A maioria das famílias e de escravos que ali se instalou no século XVI chegou por iniciativa ou aval dos donatários das ilhas das Flores e do Corvo para colonizar a região. Outros ali também aportaram homiziados por crimes cometidos no reino, ou fugidos das perseguições religiosas e políticas. Os antepassados desse povo (os Rodovalho, Pimentel, Fraga, Avelar, Valadão, Coelho, Vieira, Favela, Cunha, Lourenço, Rocha, Armas, Inocêncio, Bicho,...) chegaram a essas ilhas vindos da Terceira, Portugal Continental e de Flandres. Algumas dessas famílias, inicialmente aportadas em Portugal, tiveram origem nos antigos reinos cristãos (Aragão, Navarra, Leão, Castela) que formaram parte da Espanha. Mais tarde, a partir dos séculos XVIII e XIX, com a baleação, os corvinos passaram a emigrar para América, e lá se misturaram e deram origem a muitos luso-americanos.
Apesar da pobreza da ilha, exígua e com pouca terra, todos tinham um teto para se abrigar e um pedacinho de chão para plantar. O gado, as cabras e as ovelhas davam a carne, o leite e a lã.E o mar o peixe. Sempre havia o que comer. O trigo e a moeda eram escassos e quase sempre iam para os donos da Ilha ou para a Coroa. Não se conseguia juntar dinheiro. Isso perdurou até que, no inicio do século XIX, começaram a aparecer ao largo da ilha grandes barcos da América que faziam nas águas dos Açores a caça à baleia. Esses baleeiros-fabrica ficavam meses no mar, seguindo a rota dos cetáceos e só voltavam quando os barris estavam cheios de óleo. A tripulação heterogênea, composta de americanos e ilhéus de várias origens, era formada em portos como o de New Bedford, e completada nas ilhas açorianas, onde se encontrava alimentos, água e destemidos marinheiros. Através do embarque clandestino, facilitado pela distancia e isolamento, passou-se a ter um canal de esvaziamento da força de trabalho da ilha.
Era agosto, pleno verão. No campo, José e os irmãos faziam a tosquia das ovelhas, quando viram um barco se aproximar da costa e baixar alguns botes em direção ao Porto das Casas. Reconheceram era um baleeiro americano. Afinal surgia a oportunidade que José tanto queria!
*Maria Eduarda Fagundes
Uberaba, 08/02/08
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