28-06-2008Entenda o lugar de Guimarães Rosa na literatura nacionalda Folha Online Em meados do século 19, um número considerável de brasileiros adotou sobrenomes indígenas como forma de reforçar a identidade nacional e marcar diferença em relação aos europeus. Nesse cenário, explica Walnice Nogueira Galvão, professora livre-docente de literatura na USP, surgiu o movimento literário do regionalismo. Reprodução Pelo menos duas gerações de escritores brasileiros se dedicaram a fazer "o mapeamento da paisagem e das condições sociais do sertão" e "o inventário dos tipos humanos que se espalhavam pela desconhecida vastidão do país", afirma a professora. Quase que simultaneamente, surgiu no país uma outra linha literária, que nada tinha de documental nem de engajamento, na qual os escritores, "cada um à sua maneira", diz Walnice Galvão, "voltam as costas ao social e à militância, para embrenhar-se nas entranhas da subjetividade". A professora da USP explica que "é nesse panorama literário, basicamente bipartido, que Guimarães Rosa vai fazer sua aparição, operando como que uma síntese das características definidoras de ambas as vertentes: algo assim como um regionalismo com introspecção, um espiritualismo em roupagens sertanejas". As afirmações da professora estão no capítulo "O Lugar de Guimarães Rosa na Literatura Brasileira" do livro "Folha Explica - Guimarães Rosa", de sua autoria, editado pela Publifolha. O capítulo, que explica em detalhes o contexto em que Guimarães Rosa "surgiu" para a literatura nacional, pode ser lido na íntegra abaixo. * 1. O LUGAR DE GUIMARÃES ROSA NA LITERATURA BRASILEIRA REGIONALISMO, REGIONALISMOS O regionalismo2 foi uma manifestação literária que em parte se opunha ao que ocorria nas matrizes européias, por isso reivindicando a representação da realidade local, e em parte as prolongava, ao aceitar normas que de lá emanavam. Passou por várias metamorfoses, como se verá a seguir. No início, ao aparecer como nativismo, finca raízes na descrição da especificidade da nova terra, dando ênfase àquilo que lhe é característico, para efeito de propaganda, como o fizeram os cronistas coloniais. Daí uma predominância do pitoresco, que se revela nas enumerações de animais e frutas estranhos, com nomes também estranhos. O advento do romantismo, coincidindo com a independência política, só viria a acentuar tais traços. Se essa escola redescobre o folclore, pesquisando os contos e cantos do povo na Europa, vinha a calhar para os escritores nacionais a valorização da cultura popular no país. Sua principal personagem seria o índio, escolhido como emblema da nacionalidade para marcar a diferença com relação ao colonizador português. Número considerável de patriotas, nesses meados do século 19, trocou seus patronímicos castiços por nomes indígenas, numa verdadeira moda. Repetindo o movimento habitual, o índio das Américas adquiriu estatura de protagonista antes na França, com Chateaubriand, para só depois se tornar nosso primeiro herói literário, assinalando a modalidade nativa de romantismo, ou seja, o indianismo de José de Alencar e Gonçalves Dias. O desenvolvimento das letras tendo por foco a Corte, posição que o Rio de Janeiro ocupou como capital do país durante dois séculos, até a transferência para Brasília em 1960, suscitaria reações localistas, tanto no sul quanto no norte do país. Tais reações acusam a literatura da Corte daquilo que hoje chamaríamos etnocentrismo, opinando que o Brasil autêntico fica no interior e não no litoral deslumbrado pela Europa, a quem macaqueia. E reivindicam uma expressão tanto própria quanto autônoma de sua peculiaridade. Assim nasceu aquilo que se conhece como o primeiro regionalismo, subproduto do romantismo. Foi também chamado de sertanismo, porque trouxe o sertão para dentro da ficção, onde teria longa vida. Manifestando-se entretanto com contornos pouco precisos, pode-se dizer que sua vigência recobre bem meio século, pelo menos desde quando já ia avançado o romantismo, passando pelo naturalismo até atingir o limiar do modernismo. Nesse amplo guarda-chuva cabem pioneiros como Bernardo Guimarães, Taunay e Franklin Távora. O próprio Alencar, de importância seminal em nossas letras, entre as muitas obras que escreveu procurando realizar sua ambição de cobrir o país no tempo e no espaço, é autor de vários livros regionalistas. Para todos, o interesse central estava no pitoresco, na cor local, nos tipos humanos das diferentes regiões e províncias. Anos depois surgiria um segundo regionalismo, sob o influxo do naturalismo, em reação ao romantismo, rejeitando vários de seus achados e propondo outras sondagens. Destacam-se Inglês de Sousa, Oliveira Paiva, Rodolfo Teófilo, Afonso Arinos, Domingos Olímpio. A reação contra o romantismo precedente implicou em busca de descrição desapaixonada dos fatos, preocupação com os determinismos e com a ciência, frio diagnóstico, pessimismo e fatalismo. Generalização entretanto injusta para com alguns livros que, ao alcançar um nível mais alto de elaboração literária, escapam parcialmente ao bitolamento naturalista, como Dona Guidinha do Poço, de Oliveira Paiva, e Pelo Sertão, de Afonso Arinos. Pode-se ainda afiliar a esse segundo regionalismo de recorte naturalista alguns tardios, já pré-modernistas, sobretudo paulistas, focalizando a cultura caipira, como Monteiro Lobato e Valdomiro Silveira. Contemporâneo deles é um gaúcho dedicado às histórias e às figuras de seus pagos, Simões Lopes Neto. A relevância de sua reduzida obra, embora com resultado diverso, é algo que partilha com Valdomiro Silveira, e reside prioritariamente na criação de uma "fala" própria em primeira pessoa e em sua atenção à mimese da oralidade. A essa altura, entre a primeira e a segunda leva regionalista, já estavam completados, e foi tarefa levada a cabo com empenho e escrúpulo por pelo menos duas gerações de escritores, tanto o mapeamento da paisagem e das condições sociais, quanto o inventário dos tipos humanos que se espalhavam pela desconhecida vastidão do país: o caipira, o bandido, o jagunço, o caboclo, o cangaceiro, o vaqueiro, o beato, o tropeiro, o capanga, o garimpeiro, o retirante. Não se pode minimizar na seqüência dos regionalismos o impacto da publicação de Os Sertões, de Euclides da Cunha, em 1902. Certamente filiado aos padrões estéticos do naturalismo, embora matizado de parnasianismo e até de romantismo, sua sombra pairou sobre a literatura brasileira com uma intensidade que excedeu de muito a seu tempo. No entanto, o filão regionalista mostrava-se tão rico que ainda não se esgotara e voltaria com forças renovadas após o modernismo dos anos 20. Este, no seu afã de desprovincianizar-se e alçar-se ao patamar das vanguardas européias, apesar de todo o seu nacionalismo torcera o nariz para o regionalismo e o decretara de má qualidade estética, bem como inteiramente equivocado quanto aos propósitos de dar a conhecer o Brasil. O melhor exemplo é Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, teórico e principal artista da escola, que esboça o panorama do Brasil em sua totalidade mas deliberadamente confunde as diferentes regiões e aquilo que as caracteriza, praticando o que chamava de "desgeograficação". O REGIONALISMO DE 30 E O ROMANCE SOCIAL NORTE-AMERICANO Se para o primeiro regionalismo a inspiração tinha provindo do romantismo e para o segundo do naturalismo, o terceiro, que se tornaria conhecido como "regionalismo de 30", 3 beberia em outras fontes. No período entre as duas guerras mundiais, de 1918 a 1939, viveu-se intensa polarização política. Solicitados por crises sociais sem precedentes, ainda em pleno rescaldo daquela que foi a primeira guerra total, envolvendo o planeta por inteiro numa globalização armada até então inédita - e às voltas com uma escalada de conflitos que prenunciava a próxima guerra, mais cruel ainda -, intelectuais e artistas no mundo todo, bem como no Brasil, se arregimentavam à direita ou à esquerda. De preferência, à esquerda. Um período que assistiu à ascensão dos totalitarismos por toda parte - fascismo na Itália, Espanha e Portugal, nazismo na Alemanha, peronismo na Argentina, ditadura e Estado Novo de Getúlio Vargas no Brasil, para não falar no integralismo de Plínio Salgado - só podia mesmo convocar os intelectuais a uma maior participação na luta contra os regimes de exceção. Como não podia deixar de ser, essa arregimentação deixou marcas nas artes e na literatura um pouco por toda parte. Uma das realizações mais interessantes dela, à esquerda, foi o romance social norte-americano. Nas décadas de 20 e 30, exatamente nesse período entreguerras que estamos recortando, surge com pujança uma novidade literária, constituindo uma espécie de neonaturalismo em seu empenho de denúncia da injustiça, da iniqüidade, do preconceito sob todas as suas formas - de classe, de raça etc. Em sua preocupação social, seu mestre é o francês Émile Zola (1840-1902), principal ficcionista do naturalismo, com vasta obra que traça o painel dos males da sociedade francesa da belle époque. Com berço nos Estados Unidos, teve como pano de fundo a Grande Depressão, cujo pináculo foi o craque da Bolsa de Valores de Nova York em 1929. A crise só viria a ser estancada pela prosperidade trazida pelos investimentos industriais em armamentos e outros equipamentos bélicos, já preparando a Segunda Guerra Mundial. Os principais nomes da nova tendência são Theodore Dreiser, Upton Sinclair, Sherwood Anderson, Michael Gold, Erskine Caldwell, John Steinbeck, Sinclair Lewis, John dos Passos. E ela acabará atingindo pelo menos os inícios do jovem Hemingway, também ele jornalista, também de esquerda, também crítico da sociedade americana. Embora seja injusto deixar de lado o maior deles, William Faulkner, com o qual acontece o que sempre acontece com os muito grandes: não cabe muito bem nessa nem em qualquer classificação. Os três primeiros surgiram ainda antes do período acima definido. Destacam-se como pioneiros, todos eles socialistas e acusadores impiedosos da sociedade norte-americana, principalmente pelo culto ao dinheiro acima de tudo, com seu poder de corrupção e degradação moral. Aliás, um bom número desses escritores neonaturalistas era jornalista de profissão e socialista por convicção. Como se pode verificar no que escreveram, a busca de uma prosa desataviada, bem próxima da escrita para periódico, caracteriza a todos eles - novamente, exceto Faulkner. Hoje em dia não dá para imaginar a influência que exerceram, entre nós, em toda a América Latina e na Europa. E, principalmente, a escala em que eram lidos, pois tornaram-se best-sellers em seu próprio país e pelo mundo afora. No Brasil foram muito divulgados por várias editoras, destacando-se entre elas a Globo, de Porto Alegre, que os publicou a todos. Como vimos, os autores do romance social norte-americano são de esquerda e, se não revolucionários, ao menos reformistas. Praticando uma literatura empenhada, tiveram enorme divulgação e repercussão em seu tempo, em seu próprio país e além fronteiras, inclusive na exigente Europa. Faziam uma literatura mais fácil de ler do que aquela das vanguardas (por exemplo, James Joyce), nisso já pressagiando a indústria cultural. Esta optaria sempre em favor do mais fácil, do simplificado, relegando a alta literatura - aquela cuja forma é esteticamente informativa - a um pequeno círculo de leitores sofisticados, cada vez mais exíguo. Sintonizavam com pelo menos parte do público à época, na tomada de consciência quanto à miséria. Reivindicavam reformas que minorassem os sofrimentos dos pobres e oprimidos. Acusavam os ricos e poderosos das condições iníquas da sociedade. Mostravam-se mais despreocupados com a forma e mais preocupados com os conteúdos. O impacto que causaram pode ser medido pelo número de prêmios Nobel que conquistaram. Sinclair Lewis (1930) foi o primeiro norte-americano a ser agraciado com esse galardão, que depois coube a Faulkner (1949), Hemingway (1954), Steinbeck (1962). Com os quais, se juntarmos em registro parcialmente diferente e para cima o notável dramaturgo Eugene O'Neill (1936) e em plano inteiramente diferente e para baixo a romancista popular Pearl S. Buck (1938), teremos uma boa avaliação do peso das letras dessa nacionalidade no período. Depois dessa constelação, a premiação americana minguará outra vez. Foi a primeira vez que a cultura norte-americana suplantou a européia em nosso país. E nunca mais a Europa retomaria sua ascendência perdida. Quanto aos nossos autores, hoje é quase dispensável apresentá-los, tal a hegemonia exercida durante longotempo pelo regionalismo de 30, desde que se tornou a vertente dominante na prosa brasileira. O afã ao mesmo tempo cosmopolita e nacionalista do modernismo, que afinal se encenara todo no eixo São Paulo-Rio, somado a sua altíssima qualidade estética, fora incapaz de impedir um novo surto regionalista. Ao contrário do modernismo, que privilegiava a poesia, a voga em ascensão investe tudo no romance, gênero certamente mais popular, mais impermeável a vanguardismos e menos requintado. Com instrumentos mais aguçados que os regionalismos anteriores, tinha todo o ar, devido a sua simultaneidade, impressionante volume e ineditismo, de ser propriamente uma escola, e vinda dos estados do Nordeste.4 Historiadores e críticos são concordes em considerar como marco inaugural A Bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, da Paraíba. Ali já se notam certas coordenadas que se farão recorrentes, desde o entrecho que expõe um drama humano local, até a presença de coronéis, de retirantes, da seca, da paisagem característica e das relações sociais. Em rápida seqüência, estrearão e dominarão com seus romances a cena literária por vários decênios, com apogeu nos anos 30 e 40, Rachel de Queiroz, do Ceará, José Lins do Rego, da Paraíba, Graciliano Ramos, de Alagoas, e Jorge Amado, da Bahia, afora uma verdadeira plêiade de autores menores. Seria injusto, por não ser nordestino e pouco ter de rural, ao contrário erigindo romance após romance um painel da pequena burguesia urbana gaúcha, bem como uma saga da colonização do extremo sul arrancando do campo, deixar de citar Érico Veríssimo. O fato é que essa safra de ficção ao rés-do-chão, aspirando ao documentário, constituiu um cânone ainda vigente em nossos dias, impondo a norma à literatura brasileira, impedindo por longos períodos que houvesse percepção estética de autores que não atuassem dentro de seus ditames. E, porque coincidiu com a formação de um mercado editorial e de um público leitor, também explica em parte a persistência das ramificações do naturalismo como principal programa estético-literário entre nós. A OUTRA FACE DA MOEDA: A "REAÇÃO ESPIRITUALISTA" 5 Entretanto, nem tudo era regionalismo no panorama literário brasileiro. Uma outra linha, certamente recessiva e abafada pelo estrondoso sucesso, inclusive de vendas, dos regionalistas, tenazmente produzia, mesmo que com menos estardalhaço. E viria, a seu tempo, a gestar pelo menos um escritor extraordinário na pessoa de Clarice Lispector, embora essa gestação implicasse num salto qualitativo e numa espécie de superação tanto da negligência com o burilamento formal quanto da fragilidade de estruturação. Nessa outra face da moeda, o documento a que aspirava o romance regionalista passa longe. Nada de documental nem de engajamento, tampouco. Esses escritores, cada um à sua maneira, voltam as costas ao social e à militância, para embrenhar-se nas entranhas da subjetividade. Muito interessante é que suas afinidades eletivas provenham de outras paragens que não aquelas para as quais se voltava o romance regionalista: da França, sobretudo. A grande sombra fecundante que paira sobre a ficção introspectiva é o romance católico francês de entreguerras, prolongando-se pelos anos 40 e 50. Lidas, relidas, assimiladas e depuradas são as obras de romancistas como Georges Bernanos, François Mauriac, Julien Green, e a doutrinação de Jacques Maritain. Esse romance quase nunca é rural nem propriamente urbano, porém de matéria provinciana ou interiorana, de pequenas cidades; ou, mesmo quando rural, a discussão se entabula no plano dos problemas urbanos. Compraz-se na decadência e na degradação moral de fim de raça. Comparecem incestos, aleijões psíquicos resultantes de endogamia e consangüinidade, patriarcalismo incontrastado com opressão de filhos e mulheres, estados mórbidos, crimes, taras e perversões, mostrando-se afim ao naturalismo. Os romances dos discípulos desses autores, além de reivindicarem com ênfase uma espiritualidade que supunham perdida ou pelo menos extraviada no panorama artístico nacional, apregoavam o Mistério, assim com letra maiúscula. Suspensos entre o pecado e a graça, escrevendo à borda do inefável, sustentando que os problemas materiais - miséria, injustiça, opressão - nada significam quando comparados à salvação ou perdição da alma, esses escritores e seus escritos operam por dentro de uma introspecção levada ao limite. Tudo se passa como se quisessem perquirir uma imensa problemática espiritual, encenando-se no íntimo de cada um, enquanto recuperavam a dimensão da subjetividade - mas uma subjetividade bem singular, vivendo o drama católico. Em suas obras vamos nos deparar com os embates entre o Bem e o Mal, a escuridão da alma, a obsessão com a transcendência, o senso do enigma latente na existência, a onipresença do pecado em meio à demanda desesperada da perfeição, confrontada com a abolição dos limites. De um lado, o confinamento na problemática cristã resulta no ensimesmamento trazido por uma busca incansável do sobrenatural. De outro, desemboca na angústia da cisão entre o apelo místico e o aprisionamento na vileza da carne. Tudo isso num clima de pesadelo, facultando os vários rótulos atribuídos a essa linha literária, como os de romance de atmosfera, ou intimista, ou introspectivo, ou de sondagem interior. Seja como for, certamente encarna com vigor uma reação contra a particularização do regionalismo: esse romance é universalizante. Por isso, seus autores manifestam horror à cor local, ao pitoresco, à exuberância dos trópicos, ao típico, à imanência de um mundo sem Deus. Nisso, dessolidarizam-se dos regionalistas de 30 no que estes têm de ateus ou agnósticos, abstendo-se de tocar em assunto religioso, a não ser para zombar abertamente do caráter interesseiro do clero e da beatice dos fiéis, denunciando a cumplicidade da hierarquia da Igreja com os opressores. É de se notar que, enquanto o modernismo se dá como um fenômeno primordialmente paulista, passando-se em São Paulo entre escritores paulistas, e o regionalismo de 30 é coisa de nordestinos, como vimos, já essa outra face da moeda do romance de entreguerras tem seu chão no Rio de Janeiro, seja entre os nascidos ali mesmo, como Octavio de Faria, ou perto, como Cornélio Pena em Petrópolis, migrados de Minas, como Lúcio Cardoso, ou da Bahia, como Adonias Filho. Na capital do país, aproximam-se todos do grupo católico liderado por Tristão de Athayde, pseudônimo do influente crítico e teórico Alceu Amoroso Lima, que organizou o ideário e escreveu sobre o romance espiritualista, e pelo pensador católico Jackson de Figueiredo, criador, em 1922 - ano da Semana de Arte Moderna e da fundação do Partido Comunista -, do Centro Dom Vital, no Rio, de reavivamento católico. Quando Jackson de Figueiredo morre em 1928, Tristão de Athayde coincidentemente se converte e assume a direção daquele Centro. Todos gravitavam na órbita da revista católica A Ordem. Esse caldo de cultura, muito influente à época, também produziu, além dos romancistas, importante poesia e ensaio. Os citados são apenas os autores de maior renome, havendo um número respeitável de escritores à época que se pautavam pelo mesmo ideário. Em doses diversas, e variando conforme a personalidade artística de cada um, percebem-se todavia elementos comuns na obra de todos eles. Uma certa vivência exasperada da derrocada, meditação torturante da subjetividade, preocupação com a fatalidade, religiosidade assumida ou negada que eclode em obsessão com o pecado, uma busca da transcendência e até do sobrenatural na ficção. A reação espiritualista no romance, a exemplo do regionalismo, tampouco se desprende de todo do naturalismo, no fatalismo com que abre espaço às forças atávicas e hereditárias, aos instintos, à irracionalidade. Contribuem para esse efeito a escavação introspectiva e o aprofundamento de certas técnicas literárias típicas do século 20, como o monólogo interior, o fluxo da consciência, e tudo o que desagregasse o discurso, que assim pretendia ser fiel e colado ao que se postulava como o verdadeiro funcionamento da psique. Nem sempre é fácil distinguir com clareza uma e outra face da moeda, havendo de permeio um território de transição que muitos autores perlongaram, e em que alguns perderam o rumo. E, se Lúcio Cardoso começou pelo regionalismo, com Maleita, também Caetés e ainda mais Angústia, de Graciliano Ramos, assim como parte da obra de José Lins do Rego, por exemplo, têm um inegável ar de parentesco com esse romance de atmosfera e de indagação interior. E bem mais se pensarmos na busca de uma transcendência sem Deus. É nesse panorama literário, basicamente bipartido, que Guimarães Rosa vai fazer sua aparição, operando como que uma síntese das características definidoras de ambas as vertentes: algo assim como um regionalismo com introspecção, um espiritualismo em roupagens sertanejas. 2 Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins, 1959. José 3 Antonio Candido, "A Revolução de 1930 e a Cultura". Em: A Educação Pela Noite 4 Sérgio Miceli, Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo: Difel, 5 Alceu Amoroso Lima, "A Reação Espiritualista". Em: Afrânio Coutinho (org.), * "Guimarães Rosa" |