O rápido desaparecimento de línguas indígenas brasileiras explica por que muitos pesquisadores estão correndo para documentá-las e registrá-las. Para se ter uma idéia, das mais de 170 línguas faladas no Brasil, somente cerca de 25 possuem algum tipo de registro. Com o objetivo de preservar uma das línguas que corre o risco de desaparecer, a ONG Saúde Sem Limites, em parceria o antropólogo Renato Athias, da Universidade Federal de Pernambuco, o lingüista Henri Ramirez, da Universidade Federal de Rondônia, e a comunidade local elaboraram um dicionário da língua dos Hupd’äh, uma etnia de 1600 indivíduos que vivem na Terra Indígena Alto Rio Negro, na bacia do Rio Uaupés, no Amazonas.
“O principal objetivo da produção do dicionário foi possibilitar a educação específica e diferenciada para os Hupd’äh e assim garantir que a educação escolar indígena seja de fato efetuada”, diz Athias. Atualmente, as pessoas em idade escolar freqüentam escolas Tukanas, um grupo étnico vizinho, mas Athias acredita que a partir do dicionário será possível desenvolver uma educação Hupd’äh.
Como a etnia Hupd’äh ocupa um lugar baixo na escala hierárquica da região, a língua é desvalorizada e considerada “feia” pela demais etnias e por isso corria o risco de desaparecer. “O dicionário valoriza a língua e estabelece um elemento poderoso no fortalecimento da identidade do grupo”, diz o antropólogo. Isso quer dizer que além de ser um objeto voltado para educação, o dicionário também tem um papel político importante.
Para Athias, a introdução da escrita em uma língua, que foi durante muito tempo transmitida pela oralidade, tem elementos positivos, como a preservação da língua e a possível educação na língua nativa. Mas por outro lado, pode trazer riscos de descaracterização da cultura da etnia. “Muitos missionários a utilizam, por exemplo, para traduzir os evangelhos e provocar mudanças nos comportamentos. Mas se for bem utilizada, a língua pode ser inclusive uma arma”, afirma.
De acordo com o professor de letras da USP e pesquisador de línguas indígenas, Waldemar Ferreira Netto, é difícil prever os riscos envolvidos na introdução da escrita, mas os benefícios para a etnia são evidentes. “A tendência dos povos indígenas é ser bilíngüe. Se eles não aprenderem a escrita na língua nativa, aprenderão em outra língua, então a função do dicionário é possibilitar a educação na língua-mãe”, diz.
De acordo com o antropólogo Mauro Almeida, da Universidade Estadual de Campinas, o surgimento de publicações voltadas para os grupos étnicos nos últimos anos é uma demanda das próprias etnias que querem preservar a língua. “Além da demanda por dicionários, existe também um interesse por publicações de mitos”, diz Almeida. O antropólogo ressalta ainda que, em muitos casos, a preocupação dos índios é de resgatar uma língua que está sendo esquecida pela etnia.
Construção coletiva
Por mais de três anos, os pesquisadores viajaram freqüentemente para a região do Alto do Rio Negro com o objetivo de encontrar índios que fossem bilíngües (aproximadamente 40 Hupd’äh falam português como segunda língua). Durante essas viagens, os pesquisadores analisaram como os índios constroem frases, usam verbos e compõem o alfabeto. Após isso, em um trabalho coletivo, os pesquisadores e os Hupd’äh iniciaram a construção do dicionário. “Nós nos reunimos nas aldeias para escolher quais símbolos escritos serviriam para representar a língua e as letras escolhidas foram as do alfabeto português”, diz Athias.
Atualmente 42 Hupd’äh estão fazendo cursos de preparação para o magistério e quando se formarem professores poderão ensinar as crianças na língua nativa, integrando a etnia no sistema nacional de ensino.
Segundo Athias, inicialmente o dicionário será utilizado somente para a educação indígena, mas no futuro haverá uma edição que será lançada comercialmente. De acordo com Netto, há pouco interesse das editoras brasileiras em publicar dicionários indígenas, e também pouco incentivo do governo nesse sentido. “É mais fácil publicar fora do país do que aqui”, diz. De acordo com Netto, dicionários para a educação indígena são importantes porque fortalecem a auto-estima dos índios. “Esse tipo de dicionário contribui muito para a construção da identidade da etnia porque a língua é um marcador identitário muito poderoso”, afirma Netto.
Segundo a ONG Saúde Sem Limites, a produção do dicionário foi financiada pela organização não governamental espanhola Manos Unidas e Cooperación Al desarrollo Generalitat Valenciana.