Os monarcas portugueses, até finais do século XV, permitiram a coexistência de três credos e de três organizações jurídico-administrativas correspondentes a outros tantos grupos existentes em Portugal, sendo um claramente maioritário, o Cristão, e dois minoritários - o grupo dos Judeus e o grupo dos Mouros. Tanto os primeiros, regulados pelo Talmud, como os outros, pelo Alcorão, se agrupavam em pequenos núcleos de infiéis, sendo os seus crimes julgados fora da lei canónica que devia aplicar-se só aos fiéis a Deus. Nenhum dos três, embora anunciando a existência da unicidade de Deus, entendia que só havia Um e Ele era comum a todas a religiões do Universo, existisse gente onde fosse, desde os tempos mais recuados até hoje. São os homens que dEle falam que O caracterizam de modos diversos. Naquele sentido, os Cristãos constituem para cada grupo uma hierarquia, tendo como juiz máximo o próprio rei (ver ilustração 1).
Para além das normas próprias de cada grupo, os seus elementos estavam ainda sujeitos à legislação dos Cristãos – foros municipais, Livro das Leis e Posturas, Ordenações Afonsinas e Ordenações Manuelinas, Leis Extravagantes… - que, a coberto da capa de medidas proteccionistas, não passavam afinal de formas de segregação física destas minorias, fornecendo detalhes sobre aspectos vários, incluindo a normalização dos seus vestuários.
A título de exemplo, vejamos as cinco determinações expressas no Livro das Leis e Posturas:
1. Os Judeus não podem ser ovençais do rei nem exercer outro cargo que represente uma situação de domínio sobre os cidadãos. Deste artigo, estão excluídos os membros da nobreza e da Igreja que os podiam empregar em cargos de mando; estão proibidos de ter cristãos a trabalhar por sua conta, sob pena de perda de bens. Era-lhes vedado deserdar o filho que se convertesse ao Cristianismo, o qual deveria, de imediato, abandonar o lar paterno.
2. Judeus e Mouros não podiam ser procuradores, nem advogados, em feitos de cristãos;
3. Por seus erros e crimes, eram excluídos como testemunhas em pleitos de Cristãos. Igual exclusão sofria o que testemunhasse falso, o doente mental e a mulher em determinados casos.
4. Judeus e Mouros eram julgados pelos magistrados próprios, segundo as suas leis e costumes.
5. Não tinham direito a asilo na igreja os Judeus e Mouros, devedores de cristãos, ou os que tivessem praticado algum crime.
(pp. 19, 35, 37, 105-106, 121-122, 211 e 483).
As comunidades judaicas pertencem ao rei. Este concede-lhes, em troca de elevados impostos, um estatuto próprio definido pelas cartas de privilégio. Estas podem assumir a designação de “cartas em forma costumada”, ou seja, minutas, agregando indivíduos às mesmas imunidades; ou caracterizar-se pela concessão de uma isenção específica, que não é aplicada à totalidade da população, mas tão-só a uma determinada comunidade, como seja, por exemplo, a do pagamento de tributos.
Na segunda metade do século XV, sobretudo no reinado de D. João II, as confirmações das cartas de privilégio outorgadas a estas comunidades vão suceder-se com mais frequência, reforçando e reafirmando uma segregação espacial e física e uma autonomia jurídica e administrativa crescente face aos oficiais do rei e aos dos concelhos.
Esse estatuto concedido pelo rei permitia-lhes habitar e viver em comunidade (ocupando o espaço físico do concelho numa ou em várias ruas e estando obrigados ao apartamento), circular livremente no Reino, manter a sua individualidade religiosa – isto é, a autorização para celebrarem o ritual mosaico com as suas festividades litúrgicas, para construírem sinagogas, a fim de terem os seus sacerdotes, os seus livros de culto e as suas alfaias religiosas-, organizar-se e viver como entidade administrativa e jurisdicional independente do concelho. Possuem os seus magistrados e a câmara de vereação, ou seja, o tribunal que reúnem na sinagoga e que se rege pela lei de Moisés e pelos autores rabínicos. Isto acontecia sempre que os feitos se levantassem entre os crentes da lei mosaica e, estando o juiz e o almotacé cristãos proibidos de intervirem, porque a lei não era a canónica, eram os magistrados judeus quem aplicava a lei. No entanto, em última instância, estão sujeitos às ordenações gerais do País (Ilustração 4).
Logo a seguir ao soberano, o cargo máximo desta hierarquia pertencia ao Rabi-Mor ou Rabi da Corte. Este é um cargo característico da Península Ibérica uma vez que nos aparece tanto em Aragão como em Castela (Ilustração 1).
Contrariamente ao que possa pensar-se, ele não é a hierarquia máxima religiosa mas antes um judeu cortesão, mero representante e intermediário directo entre os seus correligionários na fé e o monarca. Habita, por este facto, na corte. Daí que, além de usufruir da confiança do rei, ele ocupe também um lugar de destaque na Cúria quer como tesoureiro-mor e financeiro, fosse como seu físico.
Sendo o Rabi-Mor o corregedor na Corte para os Judeus, cabe ao seu foro conhecer e desembargar as causas cíveis e crimes.
D. João I vai dar plenos poderes ao Rabi-Mor, se bem que o torne dependente do corregedor da corte nos locais onde o monarca estiver. Representantes seus e de sua nomeação directa são os ouvidores das comarcas. O número de comarcas variou ao longo dos tempos. No reinado de D. Dinis, o Reino encontrava-se dividido em sete comarcas ou rabbats, a saber: Santarém, Viseu, Covilhã, Porto, Torre de Moncorvo, Évora e Faro.
A máquina jurídico-administrativa estava organizada da seguinte forma: o Rabi-Mor, nomeado pelo rei, era quem detinha o poder máximo, decidindo sobre a nomeação dos arrabis das diferentes comunas. Detendo, como já foi dito, funções administrativas e legislativas, segundo a lei hebraica, era coadjuvado pelo Rabi-Menor, vereadores, procuradores, almotacés, tabeliães e escrivães. No caso particular de Lisboa, os vereadores eram doze, tendo, a partir de 31 de Janeiro de 1363, decrescido para oito, mediante determinação do rei.
Os tabeliães e os escrivães, para além de redigirem a documentação inerente à função dos magistrados comunais, desenvolvem ainda várias funções importantes na comunidade, como, por exemplo, obras de assistência e educação que estão a cargo do tesoureiro; a liturgia, a leitura das posturas da comunidade, durante a oração da Minh’ah, a realização dos casamentos e, quando tal é necessário, a excomunhão, competem ao Hazam, o leitor da sinagoga; o Shamash, o bedel, encarrega-se da iluminação da sinagoga e cobra donativos e subsídios e, finalmente, o Shohet, o degolador que, de acordo com as determinações do ritual hebraico, mata os animais que servem de alimento à comunidade.
Na actual sinagoga de Lisboa, um Ketubah – contrato de casamento que estipula as obrigações e responsabilidades dos noivos, escrito em Aramaico, obedecia a uma fórmula especial -, preservou, no tempo, as promessas de amor e fidelidade que os esposos então fizeram perante si e perante a comunidade (Ilustração 7)
Desaparecidos os seus corpos, deles ficou o registo que hoje nos revela a sua presença.
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O recuar no tempo, na tentativa de atingirmos as origens dos Judeus na Península Ibérica espera-nos um longo e minucioso trabalho que, segundo alguns autores, se perde no Império Romano ou mesmo mais longe, ainda nas sobras dos tempos de Nabucodonosor ou de Salomão. Este povo ao qual o espírito comercial ou as perseguições obrigavam à permanente procura de uma terra que desse melhores condições de vida, terá certamente alcançado a ponta mais ocidental da Europa e, por aqui, permanecido. A primeira marca sua na Península Ibérica data do séc. III e, do séc. VI, há uma lápide funerária encontrada junto à actual cidade de Lagos, o que atesta a sua presença em território nacional.
A minoria judaica funcionava como um pequeno “estado” dentro do “estado” português, uma vez que se regia por credo e normas jurídico-administrativas distintas e às quais se associava toda a filosofia de um povo que se destacava obrigatoriamente do conjunto populacional das “nações” por onde o desenrolar da História tinha obrigado a um longo périplo. Amargos tempos viriam ainda para este fragmento do povo eleito e santo que procurou um pouco de paz, nesta faixa de terra, empurrada pela Europa e em contacto directo com o Mar Oceano.
À data da formação da nossa nacionalidade, localidades como Belmonte, Lisboa, Santarém, Tomar… contavam com comunidades de judeus importantes, tendo a elas recorrido alguns monarcas, como D. Afonso Henriques e D. Sancho I, para o povoamento inerente à “Reconquista”.
Os monarcas seguintes, desde D. Dinis em diante (1279 a 1491), emitiram sucessivas normas de direito público e privado, tendentes à regulamentação das comunidades que se iam constituindo, da respectiva máquina administrativa e judicial, em tudo idêntica à que operava junto da restante sociedade cristã.
Com o governo de D. Afonso IV, porém, face à perseguição que esta etnia sofreu na vizinha Castela, as comunidades judaicas em Portugal, multiplicaram-se, obrigando o rei a legislar no sentido de obrigar à fixação de residência em locais demarcados para o efeito – as judiarias, localizadas dentro da muralha da cidade, definindo ainda as normas a que estas comunidades deviam obedecer (Ilustrações 1 e 5).
A partir de D. Pedro I, as judiarias que até aí comunicavam livremente com o território ocupado pelos Cristãos, viram o seu espaço encerrado, abrindo-se unicamente para o exterior, através de portas que se encerravam ao anoitecer.
Considerando a ameaça de perseguição por parte dos Cristãos, será legítimo interrogarmo-nos se esta seria uma medida de protecção ou de segregação, relativamente a esta comunidade ou se, por outro lado, se completam. Na verdade, a segregação a que este povo está sujeito por lei, vai revelar-se, ao longo do século XV, como uma medida de protecção face ao crescimento de um sentimento anti-judaico.
A autonomia destas comunas está abundantemente tratada, através da documentação. D. Dinis, por exemplo, concede aos Judeus - a “os seus judeus” -, uma carta de privilégios que os autorizava, para além de criarem a comuna, a eleger magistrados próprios, a lançar tributos e a construir aí o templo (situação só possível com autorização do rei), praticando livremente a sua religião. A outras comunas isentou-as do serviço militar e da aposentadoria.
A comuna de Lisboa dividia-se em quatro judiarias (Ilustração 1), todas elas circunscritas dentro da muralha fernandida: a Judiaria da Pedreira, extinta em 1317, no reinado de D. Dinis, e da qual se sabe muito pouco, leva-nos a crer que tenha existido onde hoje é o largo do Carmo. A Judiaria Velha, existente a partir de D. Afonso III, a mais populosa, ocupando 1.6/100 da área da cidade e localizando-se, espacialmente, na mancha delimitada pela rua Nova, a igreja de S. Nicolau, da Madalena e a de S. Julião; a Judiaria das teracenas ou Judiaria nova, estabelecida por D. Dinis, composta, unicamente, por uma rua, a da Judiaria, a Ocidente da igreja de S. Julião (a sua existência vai ser posta em causa por D. Fernando que, necessitando de aumentar as teracenas reais, não hesita em mandar derrubar as casas dos Judeus que aí moravam) e a Judiaria de Alfama, datando do reinado de D. Pedro I, marginando a Torre de S. Pedro, em Alfama e apresentando o seu povoamento mais intenso no reinado de D. Fernando, altura em que os Judeus aqui moradores fundam a sua casa de orações (Ilustração 5).
O núcleo condensador destas comunidades judaicas era a sinagoga (Ilustração 7), chamando a si os seus membros através do toque do sino, assume funções simultaneamente religiosas e administrativas, já que é também aqui o local de reunião da assembleia, órgão de governo da comuna, presidido pelo rabi-mor, judeu da confiança do rei (ilustração 1).
Para realização do culto, cada comunidade judaica possuía o seu local de oração; podia ser uma simples casa de habitação adaptada para o efeito ou construída de raiz; no entanto, quer a riqueza na construção quer a sua ornamentação dependiam da riqueza da comuna.
Em Lisboa, houve três sinagogas – a da judiaria velha, mandada construir, em 1307, por D. Judas, ou Judah – que teve a seu cargo a Fazenda Pública -, rabi-mor de D. Dinis, a da judiaria nova, edificada entre 1317 e 1319 e a de Alfama, erguida, entre 1373 e 1374, sem autorização régia prévia, o que acarretou demandas entre o rei e a comuna (veja-se a Sinagoga fundada pelos Portugueses em Amesterdão. Ilustração 8).
Durante a realização dos serviços religiosos, havia espaços reservados às mulheres e outros reservados aos homens.
Para além da religião, as pedras basilares da cultura judaica assentam no exercício e cumprimento da justiça, nos mandamentos do amor ao próximo, no ensino, na higiene e na prática da Medicina.
O ensino compreende a escola elementar e o Beth Hamidrash, a casa do comentário, opinião e glosa das escrituras sagradas; enquanto que, na primeira, é ensinada a leitura e escrita da lei mosaica para além da História e da Religião deste povo, na segunda - que func
iona no genesim, ao lado da sinagoga, o Pentateuco é comentado pelos Judeus que se dedicam unicamente ao estudo.
O ensino da Medicina passava pela prática junto a um mestre conceituado. O balneário, de certo modo ligado a esta ciência, situava-se junto da judiaria nova.
O almocavar – termo muçulmano -, o cemitério da comunidade judaica, localizava-se entre a rua do Bemformoso, largo das Olarias e ruas da Bela Vista do Monte e do Terreirinho até ao largo do Intendente, junto ao local onde também ao Mouros enterravam os seus familiares e amigos. De acrescentar o facto de as comunas de Lisboa e Évora possuírem ainda uma mancebia.
O termo “judiaria” para além de designar um ou mais arruamentos habitados maioritariamente por indivíduos judeus podia ainda ser usado para significar uma área específica do bairro judeu, facto este visível na judiaria velha de Lisboa quanto à judiaria dos tintureiros-sirgueiros, circunscrita à rua da Tinturaria.
A comuna de Lisboa foi a mais densamente povoada de todas as existentes em Portugal talvez devido ao facto de aqui estar sediada a corte e, em sua consequência, haver uma maior dinamização do comércio e da produção artesanal, áreas da economia que mereciam um apreço muito especial por parte dos Judeus. Efectivamente, assiste-se já, no século XIV, à proliferação de judiarias provocada pela atracção que a primeira cidade do Reino exercia sobre os Judeus ligados ao mundo do comércio e das finanças. Este facto leva-os a estenderem-se em direcção à rua Nova (zona de grande circulação de gentes e mercadorias da Lisboa medieval).
No século XV, a judiaria grande ocupava uma área de cerca de 1,68 ha. Eram várias as portas que, marginando o bairro dos Judeus, se abriram para as ruas dos cristãos: a porta de S. Nicolau (junto ao adro da igreja com o mesmo nome), a porta dos tintureiros-sirgueiros saída da Correaria, a porta da Ferraria, junto à sinagoga grande, abrindo para esta rua e para a Ourivesaria.
Nos finais do século XV, a judiaria pequena de Alfama abrangia a rua da Sinagoga e a de Ruivo, dela havendo vestígios no topónimo actual da rua da judiaria e do edifício então usado como a sinagoga de Alfama.
A fixação dos Judeus em território português é, ao longo do Século XV, desproporcional, situando-se, no Centro e no Sul, as comunas com maior projecção económica, social e cultural. A sua penetração faz-se por via terrestre, no sentido oriente-ocidente, pelo que se compreende toda uma proliferação de judiarias em concelhos próximos da linha fronteiriça, também motivadas pela actividade mercantil que se desenvolve nas regiões limítrofes portuguesa e castelhana, praticada por membros destas comunidades.
Fixando-se, inicialmente, nas principais localidades do litoral e interior, de que se distinguem Lisboa, Santarém, Évora e Guarda, em número, ao longo de todo o século XV, um pouco por todo o território português. Torna-se, no entanto, difícil elaborar uma estimativa populacional, uma vez que todos os cálculos se apresentam por defeito já que se desconhece a totalidade dos Judeus isentos do pagamento do sisão, um tributo per capita que recai apenas sobre os indivíduos casados.
A. A então vila de Santarém assiste a um acréscimo da população judaica em finais do século XIV.
B. A cidade da Guarda conta rápido com a decadência da sua comunicade judaica, ao longo da centúria de Quatrocentos, acompanhando a inflexão do próprio concelho que, por virtudes várias, se despovoa e se vê transformado em couto de homiziados para incremento da população.
C. Lamego tem uma importante comunidade judaica, densamente povoada;
D. Acontecendo o mesmo com Viseu, onde hoje se discute a verdadeira localização da judiaria.
E. Coimbra tem também uma comuna que remonta aos primórdios da nacionalidade.
F. Setúbal apresenta-se com um importante relevo no reinado de D. Fernando. Mas, no decurso do século XV, os seus habitantes extravasam os limites do bairro, indício claro do seu crescimento.
G. No Algarve, a comuna de Lagos destaca-se das demais.
H. As comunas de Tavira, Loulé e Silves não conseguem alcançar o relevo da de Lagos.
I. A de Faro torna-se relevante no século XV.
J. Em Estremoz, o bairro judaico não comporta a sua população pelo que os Judeus arrendam casas no meio dos Cristãos com a permissão de D. Afonso V;
K. Em Viana da Foz do Lima, a comunidade era reduzida e é pressionada a formar bairro próprio, também com D. Afonso V;
L. A de Castelo Branco obtém do concelho e do rei de Portugal autorização para fechar uma travessa, exterior à Judiaria, habitada por elementos da comunidade.
M. Miranda do Douro tem em 1452, judiaria apartada.
N. Em Aveiro e Palmela, as comunas atingem o número suficiente, impondo-se-lhes a segregação.
Noutras localidades cresce o número de Judeus, mas os seus bairros apresentam pouco mais que um arruamento, o que ainda hoje é bem visível na própria toponímia, como é o caso ainda de Barcelos, Braga, Guimarães, Lamego, Moura, Mourão, Olivença, Serpa, Tomar, Torres Vedras, Olivença e Viseu. Nas comunidades mais populosas, verifica-se a existência de ruas cujo nome tem origem nos mesteres desenvolvidos pelos que nelas habitam.
Por último, há ainda localidades em que os Judeus nem chegam a fixar-se como, por exemplo, Castelo Bom, Castelo Mendo, Figueiró, Pedrógão, Proença, Sortelha, Vila Maior, entre outras.
A existência de Judeus na cidade do Porto deve remontar a tempos bastante recuados. Alvitra-se que a mais antiga judiaria nesta localidade se tivesse organizado na Cerca Velha. Mais tarde, devido ao aumento demográfico, a população judaica vê-se obrigada a sair extramuros e a fixar-se na chamada Judiaria Velha.
O acolhimento prestado aos Judeus pelo rei, pelos grandes dignitários laicos e eclesiásticos (as bulas pontifícias reconhecem a sua liberdade religiosa e ainda a sua existência no seio da sociedade cristã), das autoridades e do povo é bem visível no extravasar dos seus bairros e na criação de novas judiarias, num simples prolongamento das já existentes, ou na criação de novas comunidades em lugares onde se desconhecia a sua anterior presença.
Pela legislação dos primeiros monarcas portugueses, é possível deduzir que a comunidade judaica conheceu, junto da comunidade cristã, um período de paz e de protecção real, permitindo-lhe, assim, alicerçar os pilares da sua estrutura socioeconómica que vamos encontrar no século XIV. Judeus e Cristãos, subordinados ao direito canónico e romano e às leis do Reino, convivem em sociedades paralelas, numa plataforma de igualdade.
As suas actividades económicas centraram-se em torno do comércio, do artesanato e da prestação de serviços, desenvolvendo profissões como rendeiros, funcionários da máquina administrativa, físicos e/ou cirurgiões.
Foi, no entanto, no comércio que os Judeus centraram o seu modo de vida, quer transaccionando mercadorias e produtos, como vinho, mel, cera, azeite, panos, coiros, cereais, frutos e gados, quer recorrendo à usura, movimentando o próprio dinheiro, considerado também como mercadoria. A desenvoltura e o engenho que demonstram na prática mercantil, granjeou-lhes, porém, a animosidade por parte dos Cristãos a quem estavam a arruinar o negócio, coarctando-lhes possibilidades de lucro. Desta forma e a coberto da desculpa de que os Cristãos necessitavam de precaver-se contra a malícia nos negócios que eram apanágio dos Judeus, depressa se estipularam complicadas tramas burocráticas, tendentes ao arrastamento das autorizações de contratos de compra e venda que envolviam Judeus.
De qualquer forma, a banca dos Judeus foi um recurso que os Cristãos utilizaram com frequência para viabilizar as suas próprias actividades comerciais a ela recorrendo quer o rei, ou a Igreja, os nobres e até mesmo o povo, passando todos pelos juros lançados pelos Hebreus nos empréstimos que faziam. Foram, precisamente, estes juros outro dos focos de litígio, considerando, por um lado, a impossibilidade da sua solvência e, por outro, a pressão exercida pelos Judeus junto dos Cristãos, quanto ao cumprimento do seu pagamento.
Sabendo, como ninguém, amealhar riqueza, foi esta particularidade que lhes grangeou a protecção e o respeito dos monarcas, por uma via, mas – e tantas vezes… - a animosidade ou até mesmo o ódio por parte do resto do povo, facto que conduziu em Lisboa à tentativa de assalto da judiaria grande, travada pela própria intervenção do Mestre de Avis (1384).
No domínio do artesanato, a preferência vai para a profissão de alfaiate, armeiro, cordoeiro, curtidor, fanqueiro, ferreiro, ourives, sapateiro, tecelão, tintureiro, entre outros.
Os mercadores, mesteirais ou físicos tendem a localizar-se nas ruas de maior movimento humano e de mercadorias, concorrendo, profissionalmente, com a população cristã do município.
Embora se limite, frequentemente, o termo “mesteiral” aos trabalhadores em ofícios mecânicos de artesanato ou de indústria, o termo incluía ainda e para além destes, alguns pequenos comerciantes (como sejam os almocreves, os carniceiros e os regatões e certos trabalhadores rurais como os almoinheiros e até os pescadores). Nas cidades e vilas mais importantes encontramo-los arruados, ou seja reunidos por profissões numa mesma rua. E isso é bem visível na toponímia da cidade: Rua dos Correeiros, Rua dos Fanqueiros, Rua dos Sapateiros, Rua dos Ourives (do Ouro e da Prata) …
De sublinhar que o arruamento dos mesteres começara por ser norma habitual dos próprios artífices, antes de se converter em princípio de obrigatoriedade determinado pelas câmaras. Juntando-se na mesma rua, os mesteirais de cada profissão sentiam-se mais protegidos contra eventuais violências e abusos, vigiando-se mutuamente na qualidade e quantidade dos produtos, preços por que eram vendidos e métodos de cativar o comprador. Relativamente a quem comprava, este agrupamento apresentava também vantagens, uma vez que, alinhando-se, assim, lado a lado, nas principais ruas de Lisboa, as tendas dos vários mestres, se tornava mais fácil a escolha do produto e a sua aquisição, e as inspecções à qualidade, peso e preços.
Trabalhava-se, geralmente, de sol a sol. Descansava-se ao Domingo, mas não faltavam exemplos de violação de repouso dominical. Os Judeus pretendiam sempre guardar o Sábado, obrigando, muitas vezes, subordinados cristãos a trabalhar ao Domingo.
No início do século XV, foi estabelecido no Porto, que os mesteirais não trabalhassem desde o pôr-do-sol de Sábado até ao nascer do Sol de Segunda-feira. Os pescadores estavam proibidos de sair para o mar antes de
Segunda-feira de manhã; em 1406, autorizaram os de Lisboa a antecipar a partida para o Domingo, às Ave-Marias. E, em 1456, o Papa Calisto II acedeu mesmo a que pudessem pescar sardinha aos Domingos e aos dias de Santos pé-fixados, excepção feita para as principais festas de Jesus Cristo e de Nossa Senhora. Era mesmo proibida a venda de carne, de vinho e de pão, ao Domingo, até que as gentes saíssem da missa.
Relativamente à agricultura e sendo esta, então, o factor mais importante na economia portuguesa, é aceitável pensar-se que os Judeus devessem ter desenvolvido actividades agrícolas, sobretudo quanto à exploração da vinha. Existem documentos que atestam precisamente a posse e usufruto por parte deles de vinhas e de estruturas de transformação e armazenamento de vinho, tais como lugares e adegas. As quintas e pomares foram outro pólo de atracção. Alguns deles dedicaram-se também à criação de gado. As ciências e as artes contaram também com a colaboração deles, como a Medicina, e a “Astronomia”.
A posição da Igreja, relativamente a este grupo é de uma certa tolerância, permitindo-lhe a prática do seu Credo, esperando que, um dia, os seus elementos se viessem a filiar na religião cristã. Neste sentido, é a primeira a condenar atitudes mais intransigentes por parte dos Cristãos que perseguem Judeus, colocando estes sob a sua protecção e aconselhando, em 1215, no Concílio de Latrão, em que se assenta na separação dos dois grupos em bairros distintos. Aconselha ainda os Judeus a usarem no vestuário sinais que os identifiquem.
D. Afonso IV leva em conta esta determinação e ordena que os Judeus se assinalem com uma marca amarela no chapéu. Esta medida acarretou, no entanto, muita polémica já que se não generalizou o seu cumprimento. No entanto, a separação dos dois grupos sociais é, então, de tal forma efectiva que estão penalizados pelo direito canónico e pelas Ordenações do Reino os contactos pessoais entre judeus e cristãs ou entre judias e cristãos; será penalizada com a pena capital a mulher cristã que entre na judiaria sem se fazer acompanhar de dois homens se for casada ou de um homem se for viúva e idêntica punição terá o homem judeu que receber uma cristã na sua casa. A legislação régia determina ainda que as portas das judiarias se fechem com os últimos raios de sol, sendo açoitados publicamente os Judeus que nelas não entrassem a tempo.
Todavia, apesar desta separação Judeus/Cristãos, eles estarão ligados uns aos outros quer pela proximidade das suas propriedades quer pelo próprio exercício do trabalho em que uns são assalariados dos outros. Na realidade, protegidos pelo rei e pelo próprio interesse que a este traz essa protecção, pela Igreja e pela nobreza, os judeus desenvolvem várias profissões o que lhes permite contactar com todos os estratos da sociedade cristã, no seio da qual ocupam um papel minoritário. Outro factor de aproximação é o direito de aposentadoria que os Judeus devem cumprir, relativamente aos membros da nobreza e aos oficiais régios.
A máquina tributária, tanto por parte da Igreja como por parte do rei caía sobre esta comunidade de forma impiedosa. De facto aos Judeus, competiam os seguintes:
. o dízimo à Igreja;
. o imposto da capitação que incidia sobre o indivíduo directamente;
. o oitavo ou renovo sobre as herdades;
. a dízima sobre o gado ou as colmeias;
. a sisa judenga, sobre as mercadorias destinadas ao consumo ou à venda;
. o serviço real dos quatro dinheiros que incidia sobre o rendimento individual e sobre contratos de compra e venda;
. o sisão de 2 soldos que recai sobre o vinho vendido a retalho;
. o genesim que incide sobre a liberdade de ensino;
. o serviço novo das 300 000 libras que, nos finais do século XIV e início do XV, sobrecarrega ainda mais a bolsa judaica;
. a todos estes devemos acrescentar as peitas, fintas e talhas (concelhias) e impostos extraordinários.
Fica bem sublinhado o contributo manifestamente superior dos Judeus se o compararmos com o que era cobrado aos mouros, tanto mais que a minoria hebraica sofreu uma explosão demográfica, fenómeno que não sucedeu com a moura. De facto, no séc. XV, a distribuição de comunas de Judeus em Portugal fazia-se pelas seguintes localidades:
Abrantes, Alandroal, Alcácer do Sal, Alcáçovas, Alvor, Aguiar, Alegrete, Alenquer, Alfândega da Fé, Alhandra, Almeida, Alter, Almada, Alvito, Amarante, Arraiolos, Arronches, Arruda, Atouguia, Aveiro, Avis, Azambuja, Azinhoso, Beja, Benavente, Benavila, Barcelos, Bemposta, Borba, Braga, Bragança, Cabeço de Vide, Campo Maior, Castelo Branco, Castelo de Vide, Castelo Rodrigo, Chaves, Coimbra, Coina Coruche, Crato, Elvas, Évora, Erra, Estremoz, Evoramonte, Faro, Freixedas, Freixo de Espada à Cinta, Fronteira, Fundão, Guimarães, Jurumenha, Lagos, Lamego, Leiria, Lisboa, Loulé, Marialva, Matosinhos, Mértola, Mesão Frio, Messejana, Miranda do Douro, Mogadouro, Monção, Moncorvo, Monforte, Monsanto, Monsaraz, Montemor-o-Novo, Montemor-o-Velho, Moura, Mourão, Muge, Nisa, Óbidos, Odemira, Olivença, Ourém, Ourique, Palmela, Penamacor, Penela, Pernes, Pinhel, Pombal, Ponte de Lima, Ponte de Sôr, Portalegre, Portel, Portimão, Porto, Porto de Mós, S. João da Pesqueira, S. Vicente, Sacavém, Salvaterra, Samora, Santarém, Santiago do Cacém, Sardoal, Sarzedas, Setúbal, Serpa, Silves, Sintra, Soure, Sousel, Tavira, Tomar, Torrão, Torres Novas, Torres Vedras, Trancoso, Valença, Viana do Alentejo, Viana do Castelo, Vidigueira, Vila do Conde, Vila Flor, Vila Franca, Vila Real, Vila Viçosa, Vimieiro, Vinhais, Viveiros e Viseu.
Considerando os encargos tributários que Mouros e Judeus pagavam, é fácil deduzir o peso que a comuna hebraica tinha para a economia da Coroa.
A sociedade portuguesa, apesar de muito mais tolerante relativamente aos Judeus do que a castelhana e a europeia, teve, no entanto, os seus momentos de levantamento popular contra esta minoria. Para a ocorrência destes distúrbios contribuiu certamente o facto de existir uma dicotomia entre Cristãos e Judeus que, ultrapassando o factor religioso, se estendia à posse de bens. Enquanto o judeu era conotado como homem rico, credor de bens e, em seu resultado, praticante da usura, o cristão era o homem pobre, devedor das quantias que pedia a título de empréstimo ao judeu e vítima principal deste último.
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leia o interessante estudo
Mouros e Judeus na cidade de Lisboa
nos Séculos XIV e XV
completo em
http://triplov.com/letras/Joao_Sousa/mouros-e-judeus/index.htm
este estudo é citado por Cristina Moisão
no outro que divulguei antes
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