Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


“A política da língua não devia estar dependente das pessoas”
  Em Macau fala-se mais português do que antes de 1999 e na China faltam professores lusos que respondam à avidez dos alunos. Malaca Casteleiro acusa o Estado português de não ter uma política externa para a língua portuguesa e critica a eterna dança das cadeiras. Defensor acérrimo do Acordo Ortográfico, refuta a tese dos puristas e acha boa ideia que Macau retire o pê ao óptimo.

Sónia Nunes

Que diagnóstico faz à comunidade de falantes de português de Macau?
Há uma situação diversificada no que respeita ao uso da língua portuguesa. Há a comunidade macaense, que segue sensivelmente a norma culta de Portugal, e há os aprendentes chineses que usam a norma portuguesa ou a brasileira. A unidade essencial da língua existe e é este aspecto que é importante preservar quando há duas normas diferentes.

Mas faz-se um bom uso do português?
Creio que sim. Há um grande esforço de formação de profissionais. Os chineses que terminam cursos têm como objectivo exercer uma profissão em que o português lhes é útil: como interpretes, tradutores ou prestando colaboração em empresas com negócios no Brasil ou nos países africanos. É evidente que o português que falam pode não ser muito culto, mas dominam a língua – o suficiente para se fazerem entender. Falo com estudantes (nomeadamente em Pequim) e fico surpreendido como é que em dois anos já falam uma língua tão distante do chinês, embora com algumas imperfeições.

É aceitável que a exigência se fique pela comunicação básica?
Hoje em dia não pretendemos que o aprendente estrangeiro fale a língua perfeitamente, de forma completa. Esse objectivo cultural é importante para os que leccionam, os lusitanistas e estrangeiros que investiguem a língua que são uma elite. Ora, a políticas de línguas do Conselho da Europa é que sejamos capazes de falar outra língua de maneira a que nos façamos entender.

Aqui em Macau estamos a falar de uma ferramenta que não se resume à comunicação do dia-a-dia. Quer a Justiça quer a Administração dependem do tradutor. Conhece as traduções que são feitas ou o desempenho dos intérpretes?
Não tenho esse trabalho de campo. Pressuponho que não haverá erros. No domínio jurídico, um erro de natureza lexical ou linguística pode ser grave. Toda a documentação oficial deve ser traduzida e explicitada num português correcto. Não sei como está o trabalho organizado mas devia haver supervisores quer do lado português, quer do lado chinês. O ideal seria que fosse um bilingue de elevada qualidade. Há aqui gente com essa capacidade.

Como é que no processo de ensino de uma língua estrangeira se pode ultrapassar o limite mínimo exigido pela União Europeia? Como se enriquece o vocabulário de uma comunidade de falantes distante da língua?
Isso tem que ver com os objectivos de ensino, os meios que dispomos e o nível de exigência que impomos. Um chinês que segue um curso obtém um diploma que tem de atestar competências.

Os diplomas hoje valem pouco: a cátedra perdeu o carácter da distinção.
É um projecto de investigação a desenvolver aqui: analisar os percursos curriculares, ver os níveis de proficiência que os aprendentes atingem e, em função disso, tomar medidas qualitativas que permitam melhorar a eficácia do ensino/aprendizagem. Em Portugal, temos um sistema de certificação oficial. O modelo é internacional e estipula seis níveis que são objecto de um exame. Em função dos resultados é atribuído um diploma. É um trabalho feito com todo o rigor: se o certificado for de nível avançado, significa que o candidato já tem um domínio muito razoável da língua portuguesa. Estamos em contactos com a Universidade de Macau no sentido de a avaliação da proficiência ser feita com base neste sistema.

Os professores notam que há poucos alunos que lêem regularmente textos em português. A parca existência de uma vida cultural feita em português atrofia a aprendizagem?
Pode atrofiar. O livro é sempre um elemento complementar: seria ideal que o aluno, a partir do nível intermédio, efectuasse um certo número de leituras em língua portuguesa para aumentar a cultura, enriquecer o vocabulário e as construções gramaticais. Convinha ter em conta o Plano Nacional português da Leitura. Sei que o aluno chinês é passivo, está à espera que lhe transmitem conhecimentos. Porém, o professor não é um mero transmissor de conhecimento mas um interveniente na motivação do aluno.

Conhece os manuais do ensino do português em Macau?
Alguns. Há materiais muito interessantes que procuravam responder às necessidades de aprendizagem dos alunos daqui. Hoje [ontem] apresentámos manuais mais recentes que estão mais adaptados e foram elaborados no âmbito de um quadro construído na esfera do Conselho da Europa [Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas], que faz uso da metodologia mais moderna, é universal e transferível para qualquer outro canto do mundo.

Quais são as vantagens do QECR para Macau?
Privilegia a aprendizagem sobre o ensino: o centro é o aluno. Para aprender, o aluno tem de fazer um esforço para se apropriar dessa língua. Por outro lado, define seis níveis: iniciação, elementar, limiar, vantagem, autonomia e mestria. Quando atinge o ponto máximo, o aluno domina tão bem a língua estrangeira como a materna. Apresenta também os conteúdos e objectivos de cada nível, no domínio privado ou público, profissional ou turístico. É um quadro muito completo, uma espécie de Bíblia para a aprendizagem das línguas. E está a ter um sucesso muito grande em todo o mundo. Aqui na China, não está a ser aplicado de forma taxativa. Mas os princípios fundamentais – a maior autonomia do aluno e a progressão do ensino em seis níveis – estão a ser tidos em conta.

Esse quadro por ter o selo da União Europeia, a grande bandeira do Governo de Sócrates, poderá fazer com que Portugal faça mais pela sua língua?
No contexto europeu, sim. Agora, do ponto de vista de uma politica externa da língua portuguesa o quadro é irrelevante. É notório que não temos uma politica consequente, definida a médio e longo prazo. O problema da promoção da língua e cultura portuguesas no mundo tem que ver com as pessoas e as instituições encarregados deste processo. E exigem estabilidade, persistência. Os Governos mudam constantemente: em quase 35 anos já tivemos uns 19 primeiros-ministros.

É isso que justifica a instabilidade do IPOR de Macau?
O IPOR creio que tem dez anos aqui. Quantos presidentes é que já teve? Claro que uma política de língua não devia estar dependente das pessoas. Devia ser uma política de Estado, consensual entre as principais forças do poder do país, para que não houvesse mudanças na alternância de agentes políticos. Esse trabalho nunca foi feito, mas há esforços nesse sentido.

O Acordo Ortográfico é uma operação de Estado.
É um instrumento, um princípio. Há medidas mais importantes a tomar como a criação de centros de cultura no estrangeiro. A China fundou o Instituto Confúcio. Em meia dúzia de anos, se não estou em erro, já criou 200 delegações pelo mundo inteiro que suporta financeiramente: faz um esforço enorme para enviar professores. O IPOR não tem dinheiro.

Permite-se ao Governo português que diga que não tem dinheiro para as instituições que são a cara do país na China, quando há aqui uma boa procura de falantes de português?
Se a política de língua portuguesa internacional for assumida como um grande projecto haveria recursos a afectar e nós vivemos uma situação financeira muito difícil. O argumento da falta de dinheiro é sempre fácil. Não o compreendo quando nesta parte do mundo há uma procura tão grande da nossa língua, que se afirmou de uma forma impressionante. Ao contrário do que previam certos nostálgicos do antigamente, o português está mais vivo em Macau do que antes da transferência de administração. Há na China, neste momento, oito universidades com licenciatura que quando abrem vagas para 24 alunos têm 500 a concorrer. E nós, do lado português, não temos contrapartidas. É muito importante ter um leitor português que apoie os colegas chineses que vão leccionar a língua.

A aplicação do Acordo Ortográfico poderá mostrar que a língua também é rentável?
O Acordo visa resolver uma situação inexplicável do ponto de vista linguístico e político. A língua portuguesa apresenta duas ortografias oficiais: uma seguida por Portugal, países africanos, Timor-Leste e RAEM; e uma outra seguida pelo Brasil. Trata-se de uma guerra ortográfica de cem anos. Em 1911, fez-se a primeira reforma e o Brasil não foi tido nem havido – evidentemente que não a seguiu. Aqui foi cometido o pecado original da ortografia portuguesa: se tivesse havido entendimento, o problema estava resolvido. Ao longo do século XX houve várias tentativas para unificar a ortografia, sem sucesso. Em 1990, conseguiu-se um novo acordo que teve a aprovação linguística de representantes de todos países de língua portuguesa e a aprovação política dos ministros da cultura e secretários de Estado. Tinha que ser ratificado pelos parlamentos: foi publicado em Diário da República em Agosto de 1991 e assinado por Cabo Verde e Brasil. Portugal era quem tinha o processo nas mãos e não desenvolveu diligências diplomática para que o acordo fosse ratificado pelos restantes países. A existência de duas ortografias é prejudicial para a promoção mundial da língua. Nas próprias reuniões da CPLP chegam a ser produzidos dois documentos – é um contra-senso que o acordo procura agora resolver. Já não é possível uma unificação total da ortografia: os brasileiros dizem ‘de fato’; nós ‘de facto’. Não há hipóteses de resolver esta dupla realização: temos de consagrar as duas formas. Todo o lusófono sabe que há esta diferença e vai compreender quando encontrar género escrito com acento circunflexo.

Isso não acontecia já sem acordo?
Uma coisa é compreender, outra é escrever. No inglês também há palavras com duas grafias e nunca ninguém levantou nenhum problema. As diferenças são mínimas. Do lado de Portugal, são cerca de 1500 as palavras afectadas. Com estas duplas grafias, não serão 500. Todo e qualquer falante quando receber um texto que tenha escrito ‘gênero’ não vai ficar surpreendido porque sabe que nos casos em temos ‘e’ e ‘o’ tónicos, seguidos de consoante nasal, sejam elas palavras graves ou esdrúxulas, haverá esta diferença. É uma regra muito fácil de fixar.

Por que são as pessoas tão apegadas aos acentos, pês e cês?
Não permitem que se suprima as consoantes mudas. É esse o busílis da questão.

E a argumentação do manifesto contra o Acordo que foi entregue a Cavaco Silva e que já vai a caminho das 100 mil assinaturas.
Até pode chegar às 100 mil: em 10 milhões é uma percentagem pequena. Nessa petição há lá asneiras... A língua não vai mudar nem nós estamos a ceder aos brasileiros. Não há alterações lexicais nem sintácticas. Mudam apenas aspectos gráficos. No Brasil será ônibus; em Portugal, autocarro. Para uma criança é muito mais fácil aprender a escrever óptimo sem pê. O que é que aquele pê está lá a fazer?! A criança não é sensível à etimologia. Já o adulto, sobretudo o que aprendeu latim, não aceita que se tira de lá o pê porque faz parte do património da palavra. Nós já escrevemos ‘fructo’ e ‘victoria’ e Filipe tinha outra estética quando era escrito com ph. É melhor suprimir uma consoante que não se articula do que pedir ao outro que volte a escrevê-la.

Os contestatários recuperam a etimologia para não reconhecer legitimidade científica ao acordo.
Quem são eles e que autoridade têm para dizerem isto? Estão lá dois ou três linguistas. Nunca vi da parte dos opositores soluções alternativas. É a crítica do bota abaixo, que é muito característica da mentalidade portuguesa. A nota justificativa – fui em quem a elaborou – está muito aprofundada. As pessoas não olham para isto.

Alguns dos signatários são quem melhor honra a cultura portuguesa, como Eduardo Lourenço e Lobo Antunes, que não vão alterar a forma como escrevem.
Não alterem. Duvido que, entrando o Acordo em vigor, haja algum editor que queira publicar uma obra nova que não seja na ortografia oficial. O Saramago, ao contrário do que se diz, não é opositor. Diz apenas que já não tem idade para mudar a sua ortografia mas não se opõe a que o editor a modifique. Quando for tornada lei – estamos à espera que o Presidente da República Portuguesa a promulgue – a nova ortografia será obrigatória nos documentos oficiais e manuais escolares. Também os jornais não quererão publicar uma ortografia que não seja a oficial – aceitaram muito bem escrever dossiê.

Há uma estratégia para a aplicação do Acordo a Macau? Como fica a segunda língua oficial do território que não faz parte da CPLP?
Depende das autoridades locais. Embora seja uma decisão soberana da RAEM, o Acordo devia entrar em vigor aqui. Defendo que Macau, desde que a China não se oponha, deve estar presente na CPLP como observador. Desconheço os meandros políticos mas há em Macau saber e competências para resolver o problema. Com o período de transição de seis anos e uma brochura o professor fica imediatamente informado das modificações. Mas já no próximo ano lectivo, as crianças que entrem para a escola já deviam aprender a nova ortografia. É mais fácil.

27-06-2008

Malaca Casteleiro : A política da língua não devia estar dependente das pessoas