Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


17-09-2022

UM POUCO DE HISTÓRIA DO ALGARVE - Corsários Portugueses As Muralhas da cidade de Lagos


Lagos

Durante o século XV os portugueses eram tidos como os maiores corsários da cristandade, atividade considerada nobre e honrada e apoiada pela família real. O corso era muito mais do que simples pirataria. Cumpria um papel determinante na defesa da costa Sul de Portugal e da navegação, sem encargos para o estado, que recebia parte dos lucros arrecadados. O corsário não era apenas um pirata, mas uma espécie de guerrilheiro do mar, que defendia os interesses estratégicos do país, preenchendo a lacuna da falta de uma marinha de guerra eficaz. A versatilidade dos navios corsários tinha uma grande eficiência no combate à pirataria inimiga e o caracter não oficial do corso desresponsabilizava a coroa dos actos por si cometidos.

Com a conquista de Ceuta, Portugal passa a controlar a navegação no Estreito de Gibraltar e afirma-se perante Castela como a grande potência naval da região. Este facto, aliado à necessidade de proteger os cada vez mais numerosos comboios de navios mercantes dos assaltos dos corsários Norte Africanos, origina um incremento do corso português, que esteve na génese dos próprios Descobrimentos.

AlexMassay.Lagos1621

Planta da cidade de Lagos de Alexandre Massay, 1621, códice Vieira da Silva, Museu da Cidade de Lisboa

Portugal utilizava a guerra no mar desde que era nação. O mais antigo corsário português de que há memória foi D. Fuas Roupinho, o Almirante, cavaleiro Templário e alcaide de Porto de Mós. A sua atividade como comandante naval desenvolveu-se durante o reinado de D. Afonso Henriques, combatendo os corsários Norte Africanos e fazendo incursões no Algarve e Andaluzia, chegando mesmo a atacar Ceuta. Contava com uma frota de 40 navios.

É inegável que Portugal tinha já nos séculos XIII e XIV uma indústria de construção naval forte, como provam as inúmeras referências a taracenas de construção e reparação de navios.

No século XIV, D. Dinis contrata o genovês Micer Manuel Pessanha (Emanuel Pessagno) para organizar a armada portuguesa e operar nas costas do Algarve e Alentejo. Pessanha introduz as galés na guerra do corso, navios movidos a remos e à vela, de grande versatilidade. Como recompensa pelos seus serviços foi-lhe concedido o título de Almirante e doada a Vila de Odemira.

Carta do Algarve de Alexandre Massay, 1621, códice Vieira da Silva, Museu da Cidade de Lisboa

O Algarve era o centro da atividade marítima portuguesa ligada à guerra do corso e à exploração dos mares, e uma zona privilegiada no relacionamento com o Norte de Africa. Essa predisposição tem a ver com o facto de após a sua conquista pelos portugueses não ter existido um movimento significativo de populações para o Magrebe, ficando muitos mouros na região, que mantinham contactos e trocas comerciais com Marrocos. O Algarve era um mundo à parte no contexto de Portugal, isolado pela serra algarvia, mantendo as suas tradições e cultura intactas. “Basta referir que em 1320, no reinado de D. Dinis, não havia ainda, ao que se supõe, nenhuma igreja cristã em Lagos, o mesmo acontecendo aliás em Lagoa, Portimão, Monchique, Olhão ou Vila do Bispo”. (LOUREIRO, 2008, p. 17)

O aumento da presença dos portugueses no Algarve e sobretudo o desenvolvimento do comércio na região, que se torna um importante entreposto de produtos entre o Mediterrâneo e o Norte da Europa, tem como consequência o incremento dos ataques dos corsários mouros, que frequentemente faziam pilhagens nas próprias cidades.

Para fazer face a esta situação, “el-rei D. Pedro concedeu aos moradores de Lagos o direito de andarem armados (…) a concessão régia deste privilégio dá bem ideia do ambiente de guerra latente que se vivia…” (LOUREIRO, 2008, p. 23)

O Mar das Éguas era permanentemente percorrido por navios corsários, portugueses e mouros, em busca de vítimas para os seus ataques.

“Embora os contactos comerciais pacíficos nunca tenham sido interrompidos, assistiu-se então ao recrudescimento da pirataria. De parte a parte, tornam-se cada vez mais frequentes os ataques de piratas a embarcações comerciais ou as incursões a povoações costeiras.” (LOUREIRO, 2008, p. 21)

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O Mar das Éguas ou Golfo dos Algarves visto de satélite

Vemos assim que no final do século XIV a atividade corsária generaliza-se em Portugal. Os corsários portugueses atuavam preferencialmente no chamado Mar das Éguas, ou Golfo dos Algarves, e no Atlântico, mas também no Mediterrâneo, quer fosse ao serviço do Rei de Portugal ou de nobres nacionais, quer fosse por conta própria, quer fosse inclusivamente ao serviço de potências estrangeiras. Ao corsário era atribuída uma “carta de corso”, documento que legitimava a sua actuação perante as autoridades e lhe permitia usar os portos desse país como bases. Em troca, o corsário ficava vinculado à política externa do seu patrocinador, a quem entregava 1/5 dos seus proveitos.

A casa real não se limitava a apoiar o corso, como detinha os seus próprios navios corsários, que saqueavam e atacavam navios, e promoviam expedições de busca de novas terras, para a expansão da sua atividade, pilhagem dos seus recursos e sobretudo rapto e escravidão dos seus habitantes. O corso era uma forma de enriquecimento e de ascensão social, já que muitos escudeiros eram nomeados cavaleiros após passarem algum tempo nos navios corsários, beneficiando também de reduções e isenções de impostos.

A atividade dos corsários portugueses teve um tal incremento no século XV, que não só atacavam os navios sarracenos, como os próprios navios de Portugal e Castela, motivando frequentes queixas ao rei. Era comum os navios corsários portugueses posicionarem-se na foz do Guadalquivir para atacar os navios mercantes espanhóis assim que estes se faziam ao mar.

O Forte da Ponta da Bandeira em Lagos

Os principais ninhos de corsários portugueses eram Lagos, Tavira, Odemira, Lisboa, Buarcos e Leça da Palmeira, mas Ceuta suplantaria todos eles na sua importância após a sua conquista em 1415.

Lagos tinha uma posição estratégica para o controlo da navegação, pela curta distância a que se encontra do Cabo de S. Vicente. Era a vila do Infante D. Henrique, sua principal base e um verdadeiro ninho de corsários e piratas.

O governador do Reino do Algarve escreveria alguns anos mais tarde sobre Lagos, em carta enviada ao Rei D. José, que “este lugar era a chave do reino, por ser situado na costa do mar, com uma baía onde podiam dar fundo mais de duzentas naus de guerra e que junto tinha uma praia de mais de légua onde em poucas horas se podia fazer um desembarque de grande exército”. (LOPES, 1988, obra citada)

Em 1444, Lançarote de Freitas, almoxarife da Vila de Lagos, funda a Parceria de Lagos, uma “sociedade de exploração e comércio organizada para resgate e descobrimentos da costa da Guiné” (PAULA, 1992, p. 357), que irá congregar os principais corsários de Lagos, como Soeiro da Costa, Gil Eanes, Vicente Dias e Estêvão Afonso, entre outros, promovendo expedições à costa Ocidental de Africa para captura de escravos.

Vista de Lagos . A Cidade e a Baía

A primeira expedição parte nesse mesmo ano de 1444 e é constituída por 6 navios, comandados por Lançarote de Freitas, Gil Eanes, Estêvão Afonso, Rodrigo Alvares e João Dias, capturando 235 berberes e negros nos bancos de Arguim, na costa da Mauritânia. A sua venda num terreiro junto às Portas da Vila em Lagos foi descrita por Gomes Eanes de Zurara na sua Crónica da Guiné:

“Uns tinham as caras baixas, e os rostos lavados com lágrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo muito dolorosamente, esguardando a altura dos céus, firmando os olhos neles, bradando altamente, como se pedissem socorro ao pai da natureza; outros feriam seu rosto com suas palmas, lançando-se estendidos no meio do chão; outros faziam suas lamentações em maneira de canto, segundo o costume de sua terra, nas quais posto que as palavras da linguajem aos nossos não pudesse ser entendida, bem correspondia ao grau de sua tristeza (…) as mães apertavam os outros filhos nos braços, e lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas, com pouca piedade de suas carnes, para lhe não serem tirados! (…) O Infante estava ali em cima de um poderoso cavalo, acompanhado de suas gentes, repartindo suas mercês, como homem que de sua parte queria fazer pequeno tesouro” (ZURARA, [1448] 1841, p. 133-135)

Nos dois anos que se seguiram partiram mais expedições de Lagos com destino a Arguim, trazendo escravos. O volume do tráfico negreiro era tal, estimado em 700 a 800 escravos traficados por ano, que foi fundada uma feitoria em Arguim, onde se trocavam trigo, tecidos e cavalos por escravos e ouro, e que originou a criação em Lagos da Casa de Arguim e da Casa da Guiné para gerir o negócio.

Infante

O rei tinha os seus próprios corsários, os “corsário del rei”. Os infantes D. Henrique, D. Fernando, D. Pedro e D. Duarte tinham todos corsários ao seu serviço, mas o infante D. Henrique era de longe o grande promotor dos corsários de Portugal. Era D. Henrique que promovia e autorizava as expedições corsárias e o tráfico de escravos, e sobretudo que lucrava pessoalmente com o negócio, já que era detentor do seu monopólio.

As condições dos contratos celebrados entre o Infante e os particulares impunham que “se o particular armasse uma caravela à sua custa, e a carregasse de mercadoria, teria de pagar ao Infante um quarto da carga importada de Africa”, mas “se o Infante armasse a caravela e o particular a abastecesse de mercadoria, o Infante receberia metade da carga de retorno”. (LOUREIRO, 2008, p. 61)

Para além da casa real, a nobreza também promovia o corso como um investimento lucrativo e uma forma de afirmar o seu poder e influências. Nobres como Álvaro de Castro, conde de Monsanto, ou Sancho de Noronha, Conde de Odemira, eram proprietários de navios corsários, pagando o correspondente tributo à casa real. O próprio clero participava neste negócio, como atesta o facto de D. Álvaro Afonso, bispo de Silves e Évora, chanceler-mor do infante D. Pedro, ter navios no corso. De entre a extensa lista de corsários portugueses destacam-se figuras como Bartolomeu Dias, João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira, Vasco Anes de Corte Real, Álvaro Fernandes Palenço, Álvaro Mendes de Cerveira ou Pedro Vaz de Castelo Branco.

corsarios

Corsários

As Ordens Militares de Cristo, Santiago e Avis também estiveram envolvidas na guerra do corso. Não foi estranho a esta situação o facto do Infante D. Henrique ter sido administrador da Ordem de Cristo até 1460 e D. Fernando da Ordem de Santiago. A Ordem de Avis foi particularmente ativa no Mediterrâneo, onde se destacaram os corsários Soeiro da Costa, alcaide de Lagos, Rodrigo Sampaio, Diogo de Azambuja e Pedro de Ataíde o inferno, o mais famoso de todos os corsários portugueses, que ficou na história pelo terror que incutia nos mares por onde navegava.

As Praças portuguesas e as principais bases corsárias Norte-africanas na costa de Marrocos

O estabelecimento das Praças-fortes portuguesas em Marrocos foi em parte motivado pela atividade dos corsários Norte-africanos, já que a sua relação com as cidades da costa de Marrocos sempre foi evidente. Para além disso, a presença portuguesa no local levaria a guerra do corso para o território inimigo, abrindo outras perspetivas em termos de estratégia. A conquista de Ceuta de 1415 é assim determinante na luta de Portugal contra a pirataria Norte-africana.

Conforme refere David Lopes, ”Esses ladrões do mar, no Mediterrâneo como no Estreito e no Atlântico, ou ao longo das suas costas, salteavam os navios e as populações do litoral, roubando uns e outros, cativando as pessoas, ou matando-as, se resistiam. Quando a nossa gente entrou em Ceuta, encontrou lá dois sinos que os corsários tinham tomado em Lagos, e foram colocados na antiga mesquita convertida em igreja.” (LOPES, [1937] 1989, p. 8)

David Lopes refere também as inegáveis vantagens que as praças de Marrocos prestaram na luta contra o corso. “Desde então Ceuta foi padrasto dos mouros. A cavaleiro do Mediterrâneo e do Estreito, vigiava essa navegação inimiga, e impedia-a muitas vezes, ao mesmo tempo que protegia a outra navegação cristã entre o Mediterrâneo e o Atlântico. O benefício geral que daí resultava era muito grande e Portugal prestava um inestimável serviço à navegação europeia.” (LOPES, [1937] 1989, p. 9)

Gravura de Ceuta no séc. XVI de Braun and Hogenberg

 Ceuta transforma-se rapidamente na maior base de corsários portugueses, suplantando a importância de Lagos. A conquista de Ceuta alarga o âmbito das ações de Portugal, que passa a controlar a navegação no Estreito de Gibraltar e a sabotar o comércio entre Marrocos e o reino de Granada.

D. Pedro de Menezes é nomeado capitão da Praça e responsável pela sua defesa. Pedro de Menezes compreende rapidamente que a defesa de Ceuta não se faz só por detrás dos seus muros, mas principalmente no mar. Inicialmente só tinha ao seu dispor duas galés deixadas por D. João I à guarda de Micer Tom, irmão do Almirante da armada de Portugal, que se mostraram embarcações pouco adequadas para combater os corsários muçulmanos.

“Na altura do regresso a Portugal, após a conquista de Ceuta, João I deixou em Ceuta duas galés para guardar o Estreito e defender a praça, recém-ocupada. O tempo demonstrou, no entanto, que para reprimir a pirataria muçulmana, era conveniente usar-se um tipo de barco, rápido e ligeiro, capaz de perseguir e se aproximar do inimigo e, naturalmente, apresá-lo. Ocorreu, assim, a necessidade de se construírem embarcações menores e mais velozes, a fim de se adaptarem às águas da bacia do Mediterrâneo e do «Mar das Éguas». Também se verificou o recurso a lenhos capturados pelos corsários, que iam engrossar a marinha de guerra portuguesa. A coroa e, em particular, Ceuta assimilaram esta experiência funcional, ao optarem pelo fabrico de naves de baixa tonelagem, adaptadas à singularidade de navegação no Estreito. Ao menor porte, exigia-se que fossem céleres. Ora, uma pequena vela actuava em qualquer praia, ancoradouro, enseada, o que não acontecia com outras de maiores dimensões, que exigiam lugares mais apropriados.” (CRUZ, 2003, p. 54)

Fusta

Fusta com pavilhão português, de Jan Huygen van Linschoten, Koninklijke Bibliotheek, Holanda

O primeiro navio construído em Ceuta foi uma fusta baptizada “Santiago Pé de Prata”, cujo comando foi confiado ao corsário Afonso Garcia, homem que nutria um ódio muito particular pelos mouros, dado que passara algum tempo nas masmorras de Marrocos. Seguiu-se a construção de outros barcos de pequeno porte e a utilização de navios aprisionados. “Do que foi dado a estudar, a frota portuguesa empregou, preferencialmente, a fusta e o bergantim, seguido da galeota e da barca e, com menor expressão, a barqueta, galé, além da caravela e alaúde”. (CRUZ, 2003, p. 55)

Muitos nobres mantinham frotas de corso em Ceuta, a começar por D. Henrique e D. Pedro, cujas embarcações circulavam entre a cidade e Lagos. Zurara refere-se às “Fustas do Conde, das quais era o principal Capitão Álvaro Fernandes Palenço, homem por certo nobre, e que grandes, e muito notáveis coisas fez no mar”. (ZURARA, [1463] 2015, p. [534-535] 330-331 )

Outros estabeleceram-se em Ceuta e aí geriam os seus negócios, como Micer João de Salla-Nova, Diogo Vasques ou Fernão Guterres. Muitos estrangeiros também utilizavam Ceuta como sua base, principalmente genoveses e aragoneses, como Pêro Palau ou Benito Fernandez. D. Pedro de Meneses empregava nos seus navios corsários portugueses e estrangeiros, como o genovês Pedro Palhão ou o castelhano João Riquelme, construindo em poucos anos um autêntico império económico.

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Ataques corsários portugueses realizados a partir de Ceuta

 O aumento do número de corsários e dos recursos navais expandiu a atividade do corso sediado em Ceuta para o Mar de Alborán, a Leste, até ao Cabo Gata e para a costa Atlântica de Marrocos até Anafé. A esta expansão da actividade do corso correspondeu também o aparecimento das incursões em terra, muitas vezes de forma concertada com a marinha de guerra e a tropa regular, saqueando aduares com o objectivo de fazer cativos e pilhar gado, colheitas e outros bens.

“Como nos faz crer Zurara, era difícil a Ceuta manter-se sossegada: ora se faziam entradas território adentro, ora incursões marítimas”. (CRUZ, 2003, p. 50)

A Ceuta afluíam muitos aventureiros em busca de fortuna, nobres que procuravam fama e honra, degredados que expiavam os seus crimes. Ceuta transforma-se em pouco tempo numa cidade sem uma estrutura social tradicional, vivendo de actividades parasitárias e acolhendo uma população marginal, sendo geralmente referenciada como o “presídio de Ceuta”.

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Nos séculos seguintes o corso português expande-se pelos 4 cantos do mundo, do Oriente às Caraíbas, nas costas Ocidental e Oriental de Africa. O incremento do comércio marítimo origina o aparecimento do corso generalizado nas várias potências europeias.

Muitos portugueses viriam a ter um papel preponderante no contexto da pirataria mundial, ao serviço de Portugal, de outras potências ou de si próprios.

É inegável o contributo de Portugal para o desenvolvimento da indústria da construção naval, do aperfeiçoamento das técnicas de navegação e da cartografia, mas os Descobrimentos portugueses, iniciados no final do século XIV e início do século XV ficaram inevitavelmente marcados pela política de guerra personificada pelo Infante D. Henrique e por actividades menos nobres que lhe estavam associadas, como a pirataria e o tráfico de escravos.