31-10-2022 Carta aos brasileiros José Eduardo Agualusa,escritor angolano
Antes de ficar para trás, antes de se afundar na lama escura do bolsonarismo, o Brasil chegou a ser realmente o futuro de todos nós — da Humanidade. Nessa época (parece que já foi há muito tempo), pessoas do mundo inteiro olhavam para o Brasil, encantadas com a capacidade quase mágica que o país parecia ter para harmonizar o inconciliável.
O mundo (a parte melhor do mundo) acreditava na alegria daquele cristianismo africanizado (ou no animismo cristianizado dos terreiros); queria acreditar na autenticidade daquele grande organismo misturador, onde europeus e japoneses podiam (sem estranheza) cultuar divindades indígenas ou africanas, e índios iriam, num futuro próximo, plantar mangueiras na Lua.
O mundo acreditava naquele país, capaz de juntar no patrimônio dos seus principais escritores, figuras de origens tão diversas como descendentes de africanos escravizados (Cruz e Sousa, Machado de Assis, Lima Barreto); uma judia ucraniana (Clarice Lispector), um filho de imigrantes libaneses (Raduan Nassar); ou um filho de imigrantes portugueses (Rubem Fonseca).
O mundo acreditava no elegante universo sonoro de um Paulinho da Viola, de uma Marisa Monte, de um Caetano Veloso; na suave erudição de um Milton Santos; na serena gentileza de um Antônio Pitanga; na possibilidade do cosmopolitismo profundamente brasileiro de um Emanuel Araújo.
O mundo acreditava na vitalidade de um país com uma cultura urbana tão firmemente enraizada no amanhã quanto nas mais mais vibrantes tradições ancestrais.
O mundo acreditava naquele país, que, à sombra tutelar da imensa floresta amazônica, vinha reinventando e recombinando filosofias indígenas e de matriz africana, de forma a produzir um pensamento novo, com potencial para se constituir alternativa a utopias falhadas e a sistemas caducos, incapazes de harmonizarem desenvolvimento com sustentabilidade.
O Brasil falhou o salto pelo qual uma boa parte do mundo ansiava. Por um lado, porque a outra parte desse mesmo mundo tinha receio de que, cumprindo-se o Brasil, se começasse a desmoronar todo um sistema secular de exploração dos países do Sul. Por outro lado, porque dentro do Brasil vinha crescendo, sem que muitos de nós se apercebessem, um verdadeiro Anti-Brasil. Esse outro país, o Anti-Brasil, que em tudo se opõe ao primeiro — o ódio substituindo o amor; a brutalidade substituindo a gentileza; a estupidez substituindo a criatividade e a cultura —, tem vindo a ser, em larga medida, apoiado e fortalecido por aquela parte do mundo que teme o triunfo do Brasil.
E assim chegamos ao momento em que estamos agora.
Queridos brasileiros: sou um, entre tantos milhões, daquela parte do mundo que cresceu de olhos postos no Brasil, como num farol. Venho dizer-vos que podem contar com a força do nosso amor e da nossa fé. Venho pedir-vos que, amanhã, não se esqueçam de nós. Não é apenas o destino do Brasil que está em jogo. É a possibilidade de o Brasil ajudar o mundo a construir um futuro melhor.
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por José Eduardo Agualusa,
escritor angolano de ascendência portuguesa e brasileira, agornte em Moçambique. Em 1975, veio estudar Silvicultura e Agronomia para Lisboa, acabando, no entanto, por abandonar os estudos para se dedicar ao jornalismo e à literatura. Membro da União dos Escritores Angolanos, colaborou em numerosos jornais e revistas, como o Expresso, o Semanário, o África Jornal e o Público
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