05-10-2022SOBRE RAÍZES E ASAS, Luís Castro Mendes diplomata e autorAs nossas raízes estão lá fora Luís Castro Mendes diplomata e autor Opinião/ Só duas coisas podemos dar aos nossos filhos: as raízes e as asas Provérbio yiddish
Antes de partir para o meu primeiro posto diplomático, nunca me tinha posto a questão de ser português. Pensava-me português por acidente, nem melhor nem pior do que qualquer outro acaso de nascimento que me pudesse ter acontecido. Eu era do mundo e o mundo não andava à minha procura, como fez a Ruben A: era eu quem tinha de ir ao encontro do mundo e ele estendia-se nos mapas, para além dos mares e das fronteiras terrestres, por espaços que a minha imaginação ansiosa povoara já de sonhos e de lendas, lugares que não viriam perder o seu brilho quando cheguei a vê-los, como sucedeu a Proust com Veneza, mas que se estendiam no espaço e no tempo à minha espera. É quando vivemos fora da nossa terra que a questão sobre o que somos se nos vem finalmente colocar, ao nos vermos confrontados com a realidade dos outros. Um povo de mercadores e de migrantes como o nosso tinha que forçosamente adquirir, para sobreviver à sua miséria, características miméticas bem desenvolvidas, que passaram a património coletivo. Mas só nos reconhecemos verdadeiramente, como seres humanos ou como integrantes de uma ou várias comunidades, através do olhar que os outros lançam sobre nós e que nós enfrentamos nos outros. Como dizia Antonio Machado, El ojo que ves no es /ojo porque tu lo veas/es ojo porque te ve. Por isso eu só entendi bem que era português quando vivi fora de Portugal e me reconheci nos outros junto de quem vivia. Quando em 1977 aterrei no aeroporto de Luanda, que já conhecera dois anos atrás, a terra vermelha, o bafo de calor e o estranho bronzeado amarelo dos colegas que vieram buscar-me ao aeroporto foram os primeiros sinais de estranheza a recordar-me que aquela não era a minha terra. Sempre o soubera, até pela luta clandestina anticolonial por que passara, sempre tivera consciência de que aqueles povos eram e deviam tornar-se independentes do mito imperial português e dos seus podres poderes. O que me escapara até então fora a profunda identidade de raízes que me ligava àqueles estranhos e tão familiares estrangeiros junto de quem passara a viver. Familiares, como o poeta moçambicano José Craveirinha dizia no seu poema "Ao meu belo pai ex emigrante" Oh, Pai: Juro que em mim ficaram laivos do luso-arábico Aljezur da tua infância mas amar por amor só amo e somente posso e devo amar esta minha única e bela nação do Mundo onde minha Mãe nasceu e me gerou e contigo comungou a terra, meu Pai. Familiares na própria opressão partilhada e no próprio cruel dilaceramento que a situação colonial trazia. Ainda Craveirinha, no mesmo poema: soltas já são as tuas sentimentais sementes de emigrante português espezinhadas no passo de marcha das patrulhas de sovacos suando as coronhas de pesadelo. closevolume_off Eu não passei nem sofri aquilo que sofreram os africanos e que foi muito. Mas a surpresa que para mim foi aquela África, que nunca tinha habitado os meus sonhos e que desde há muito considerava terra dos outros, foi a de, como mais tarde tentei dizer num poema, escrito na Ilha de Moçambique, te reconhecer como eu respiro. Era a terra dos outros, sim, mas qualquer coisa que falava a nossa língua ali ficara, para além da memória do tráfico de escravos, do indigenato e dos massacres de guerra, memórias que devem perdurar e não se podem perdoar, mas que existem ao lado de outras memórias e de outras histórias. O que fica de nós na terra dos outros foi o que me fez descobrir que as nossas raízes estão fora de nós e que é só fora dos nossos lugares de origem que nos descobrimos tal e qual somos. É só fora do nosso espaço que encontramos as nossas raízes. Ou as nossas asas...
|