03-10-2022SER RUSSO por Andre Vltchek*Está quebrada a confiança entre o ocidente e a Rússia. Já estava abalada há bastante tempo, mas agora está irreversivelmente quebrada. Boa coisa, porque que confiança poderia haver entre o imperialismo fascista e as forças que hoje lutam para libertar a humanidade? Não é difícil enganar o povo russo. É preciso pouco para ganhar-lhe a confiança; às vezes um sorriso, meia dúzia de palavras carinhosas, algumas promessas e juras feitas com sinceridade. Os russos podem ser facilmente 'comprados' com gentileza. São um povo confiante, vulnerável. Se abordados com ternura e simpatia, eles logo abrem o coração, partilham até o último pedaço de pão com quem tenha fome, oferecem a camisa do corpo a quem tenha frio. Chegue-se a um russo com promessa de amor eterno, devoção, simples amizade, que seja, e as probabilidades são de que todas as portas se abram para si e as defesas caiam. Talvez, algum dia, ele ou ela lhe peça: "Por favor, nunca, nunca me atraiçoe". Mas ninguém lhe pedirá garantias, nenhum compromisso por escrito, nenhuma assinatura em contrato. Por causa dessa confiança e abertura, morreram milhões, dezenas de milhões de russos! Os russos deram ao mundo tudo que tinham. Os russos lutaram pela humanidade inteira. Abriram o coração e as portas. Alimentaram os que estavam em miséria extrema, muitas vezes a morrer de fome. E no fim os russos foram traídos, não uma, nem duas, mas várias, várias vezes! Num mundo sem espinha dorsal, baseado no individualismo, no lucro, no servilismo, é fácil, muito fácil trair alguém generoso, alguém que doa. Tiranos só muito raramente são traídos, porque a lealdade que recebem é baseada no medo, na auto preservação, no auto interesse mercantil. No mundo covarde, corrupto, que o ocidente construiu e as suas religiões construíram, só se obtém lealdade mediante o terror. Apesar de horríveis traições e da selvageria contra o povo russo ao longo da história, os russos realmente nunca 'aprenderam a lição', nunca aprenderam o cinismo ocidental e jamais dominaram a arte de sacrificar outros em nome dos próprios interesses. Todos os acordos com a Rússia foram despedaçados, sempre que assim interessou aos invasores. Os escandinavos ceifaram incontáveis vidas russas, e o mesmo fizeram os alemães, franceses, polacos, britânicos, norte-americanos e checos, para ficar só nesses. Os russos jamais de facto 'puniram' alguém, como fazem os protestantes e anglo-saxões. Castigo é lixo puritano, basicamente. O modo russo de pensar é quixotesco demais para castigar alguém. O ocidente mentiu a Lenine, a Estaline, a Khrushchev e por fim, a Gorbachev. O ocidente agora mente a Putin e sobre Putin. Traída, a Rússia mergulharia em inimaginável agonia, passaria por fogo e devastação, pelo desespero. A Rússia enterraria milhões de filhos e filhas. É provável que nenhuma outra nação no planeta tenha algum dia passado por devastação daquela magnitude. Então, de repente, o país começaria a erguer-se dos joelhos, lentamente e assustadoramente, para mostrar todo o seu poder, seu tamanho, a determinação, a força. Ferida e enganada, mas orgulhosa e magnificamente bela em sua santa ira, a Rússia ergueria a sua espada pesada, poria direitas as costas, secaria as lágrimas e começaria a andar directamente contra o inimigo. As batalhas da Rússia sempre são às claras. A Rússia combate honestamente as suas batalhas. Foram derramados oceanos de sangue, a maior parte desse sangue é sangue do povo russo. Diferente do ocidente, a Rússia não bombardeia à distância, não usa drones nem bombas atómicas para matar milhões de civis e assegurar para si a Vitória. As batalhas russas são homem a homem. São dezenas de milhares de tanques, como na batalha de Kursk, milhões de soldados, como em Estalinegrado. Ninguém jamais pôde ou pode derrotar a Rússia, porque a ira dos russos, como o amor deles, é grande e puro. A Rússia nunca foi derrotada. Seu coração ferido está cheio de amor e poesia, mesmo quando o peso de seu punho cai sobre os déspotas, usurpadores e assassinos em massa. A Rússia nunca foi derrotada, também porque quase todas as guerras que a Rússia principalmente lutou foram guerras justas - guerras para salvar a vida do povo russo, mas guerras, também, pela sobrevivência de toda a humanidade. (…) 20 ou talvez 27 milhões de soviéticos, principalmente russos, perderam a vida defendendo o planeta contra as hordas de Hitler. Depois, centenas de milhões de outros continuaram a dedicar a vida a construir mundo melhor, mais igualitário. Sem a União Soviética, sem o povo russo, não haveria liberdade, não haveria independência para países asiáticos, africanos e do Médio Oriente. Sem os soviéticos não teriam sido possíveis as revoluções na América Latina. Por isso o ocidente tanto odiou a União Soviética e é por isso que tanto odeia hoje o povo russo. O ocidente perdeu colónias, perdeu a guerra da propaganda e perdeu o monopólio que tivera, para definir tudo sob o sol. Só imbecis podem responder às mais tóxicas mentiras da propaganda ocidental, que comparam a Alemanha nazi à União Soviética estalinista. Sobre isso, escreverei em breve. O nazismo só se compara ao imperialismo europeu e norte-americano, ao colonialismo. Nazismo e colonialismo são feitos do mesmo estofo. E a União Soviética esmagou ambos, derrotou ambos! A Rússia empunha hoje a histórica bandeira soviética. Os chauvinistas e xenófobos ocidentais lutam hoje pelo controle sobre todo o planeta, até pela sua própria sobrevivência. A menos que dividam Rússia, China e América Latina, o ocidente está acabado. Eles sabem disso! A menos que esmaguem tudo que é honesto, bom e optimista nas nações que resistem ao monstruoso regime ocidental, os dias do ocidente estão contados. Dia 9/5/1945, o mundo todo mudou. A humanidade voltou a andar adiante. Lentamente, em ritmo desigual, frequentemente com erros e voltas, mas mesmo assim, adiante! Os grilhões coloniais começaram a ser quebrados. Pessoas de todos os continentes voltaram a sonhar com a real liberdade, igualdade e a irmandade de todos os homens. Aquela bela bandeira vermelha agitada no telhado do Reichstagen Berlin tornou possíveis esses sonhos. O povo soviético provou que a dignidade humana e liberdade são valores pelos quais vale a pena sacrificar-se. A Ode à Vitória foi escrita com o sangue dos soviéticos oferecido com generosidade, e pode por isso inspirar e modelar gerações futuras. Mas a ganância e o niilismo do ocidente recusam-se a morrer. A sua obsessão com controlar e saquear o mundo atingiu um nível inimaginável. Todas as forças do Império foram mobilizadas. Luz e esperança foram confrontadas pela escuridão e a falsidade. Sonhos belos e puros foram antagonizados pela corrupção. Numa orgia de truques sujos e ardis, a União Soviética foi destruída. Num único instante da história, todo o mundo oprimido perdeu seu mais poderoso aliado e defensor. O que veio depois, foi o mais completo horror. O Império pôs-se a desestabilizar um país depois do outro: na África, Ásia, no Médio Oriente e até no ex-bloco oriental. Morreram milhões, expostos, desprotegidos, totalmente abandonados. As hordas fascistas acreditaram que, daquela vez, haviam vencido. Em Moscovo, Yeltsin, beberrão e lacaio do ocidente, começou a matar o próprio povo pelas ruas, e a bombardear o próprio Parlamento. Aquilo era "democracia", como os jornais em Paris, Londres e New York escreveram quase imediatamente. Era tudo com que sonhava o ocidente: uma Rússia fraca e desestabilizada, de joelhos, à mercê do Império. Viajei a Moscovo e à Sibéria. Vi cientistas russos em Novosibirsk vendendo suas bibliotecas na rua, em estações de metro, sob o frio mais intenso. Vi velhos veteranos de guerra pedindo esmolas, vendendo as medalhas. Vi trabalhadores russos passando fome, sem receber salários durante meses. Então, alguma coisa aconteceu. A Rússia recusou-se a continuar de joelhos. Rapidamente os russos detectaram as mensagens que vinham do exterior; e viram a armadilha. O povo russo compreendeu que o que as mais horríveis invasões não haviam conseguido, as mentiras, os ardis, o jogo mais sujo do Império fascista obtivera em apenas uns curtos poucos terríveis anos. Como tantas vezes na sua história, a Rússia teve de ou erguer-se, ou morreria. E ergueu-se. Indignada e decidida! E como sempre no passado, quando se ergueu para enfrentar o mal, enfrentou-o pelo próprio povo e também por toda a humanidade. A Rússia reuniu-se, ao longo da última década, em torno da bandeira russa. Não é perfeita e não é tão 'socialista' como tantos de nós gostaríamos que fosse, mas há uma grande herança, uma inércia soviética que permanece na política externa da Rússia, assim como permanece o grande orgulho e a firme decisão de melhorar o mundo, de proteger os fracos. (…) Sou russo. Nasci na Rússia, e minha mãe é meio russa, meio chinesa. Mas mesmo a minha parte chinesa vem do Cazaquistão, que foi república soviética. Meu avô, Hussein, foi alto- comissário, equivalente a ministro do gabinete, chinês étnico, linguista, morreu muitas décadas antes de eu nascer. Fui criado na Checoslováquia. O meu pai, cientista, mudou-se para a Europa. Desde criança vivi em New York. Depois meti o pé na estrada e não parei nunca. Hoje sou internacionalista. Mas no fundo de mim, sou russo. Não sei se me qualifico como russo. Desde menino, sempre tive passaporte soviético. Os momentos mais felizes da minha vida eram quando, ainda criança, minha mãe me levava, todos os verões, para o aeroporto de Praga, onde eu era despachado por avião, para Leninegrado. Na outra ponta, minha avó me esperava. Minha avó Elena não era só minha babushka. Minha avó Elena foi soldada, combateu contra os nazis, defendeu aquela sua cidade bem-amada, sua Leninegrado. Minha avó cavou trincheiras, enfrentou tanques alemães, e foi duas vezes condecorada. E era a mulher mais doce que conheci na vida. Ensinou-me a gostar de poesia e literatura. Contou-me centenas de histórias, algumas bonitas, outras de meter medo. Sou escritor por causa dela, escritor russo, apesar de escrever toda minha ficção exclusivamente em inglês e a maioria dos meus filmes recentes terem sido feitos em espanhol. Quase toda a minha família russa morreu lá, em Leninegrado, durante o cerco, décadas antes de eu nascer. Todos os anos, durante os dois meses de verão, minha avó minha avó dedicava-se a mimar-me o mais que podia. Ou era o que eu pensava que ela o estivesse fazendo. Hoje entendo que, para ela, era como um combate cultural, um esforço empenhado de injectar em mim tudo o que há de grande, sobre a Rússia. Minha avó fazia economia durante dez meses, e então, quando eu chegava para visitá-la, levava-me às óperas, aos teatros, aos museus, aos parques em torno de Leninegrado. Cozinhava para mim a comida mais deliciosa. E pelo menos uma vez por ano, levava-me ao Cemitério Piskarevskoe, onde a enorme estátua da Mãe Terra abre os braços: "Ninguém foi esquecido, nada foi esquecido", lê-se em letras douradas gravadas no granito. Durante o cerco de Leninegrado morreram 1,5 milhão de pessoas, muitos estão sepultados ali, em incontáveis trilhas de grandes valas comuns. Cresci. Tornei-me escritor e cineasta; viajei pelo mundo. Mas, estivesse onde estivesse, aquelas palavras sempre me seguiram, gravadas em mim. Minha avó sempre estava comigo, ela também, e também a cidade, o sacrifício e a Vitória! Não sei se isso faz de mim objectivamente russo. Mas sinto-me russo e ajo como russo. Ser russo... Hoje, "russo" não é só a nacionalidade: é verbo. Significa erguer-se contra a opressão, contra o imperialismo ocidental, construir pontes entre os países que estão resistindo ao terror imperialista ocidental. E hoje há muitos "novos russos". Não são os mesmos da era Yeltsin, não são personagens da bufonaria capitalista. Os "novos russos" de que falo são ao mesmo tempo russos e internacionalistas. E muitos desses frequentemente não têm uma gota de sangue russo. Mas lá estão, orgulhosamente defendendo o mundo, e estão unindo forças com a Rússia, a China e a América Latina na sua luta determinada por um mundo melhor. Conheço vários grandes russos. Alguns são camaradas, como o renomado advogado internacional canadiano, poeta, novelista e pensador, Christopher Black. Como Peter Koenig, economista suíço, que deixou o Banco Mundial por total desgosto, deu meia volta e abertamente atacou o establishment. Ou como meu 'compá' Patrice Greanville, nova-iorquino/chileno/argentino editor-chefe do lendário "The Greanville Post". Essas pessoas trabalham sem parar, desmontando as mentiras que o Império espalha pelo mundo: mentiras sobre a Rússia, mentiras sobre a União Soviética, mentiras sobre a 2ª. Guerra Mundial e mentiras sobre o imperialismo ocidental. Durante séculos, a Rússia foi apunhalada e enganada por gente de fora. Foi traída, enganada, ofendida. Muitos países que a Rússia libertou traíram-na da maneira mais vulgar. Checos e polacos violaram monumentos aos soldados russos - aqueles jovens que deram a vida por Praga e Varsóvia no final da 2ª Guerra Mundial. A Europa Oriental abriu as portas à NATO e à União Europeia. Por egoísmo pragmático, abandonaram as mais belas ideias, os mais belos projectos - entre os quais o internacionalismo - e, em vez disso, uniram-se aos opressores da humanidade - o Império. Quanto mais esses países se prostituem, mais agressivamente berram os slogans da propaganda ocidental, insultando directamente e provocando, primeiro a União Soviética, mais recentemente, a Rússia. Lacaios lastimáveis e avarentos, e colaboradores do imperialismo ocidental têm buscado, desesperadamente e continuadamente, qualquer justificação moral para a traição que cometeram. Distorceram a história e inventaram factos. Desencadearam agressões contra os que defendiam as partes e os povos usurpados e saqueados do mundo. Recentemente, o ocidente despoletou o conflito na Ucrânia, onde ajudou a derrubar o governo eleito em Kiev. Na sequência, imediatamente, puseram-se a alimentar os mais histéricos sentimentos anti-Rússia. Quanto mais óbvia se tornava a situação, mais altas as vozes do pacto anti-Rússia, tanto na Europa Ocidental, como Oriental. Ucrânia, Síria e Líbia - todos esses conflitos provaram que nenhuma lógica consegue prevalecer. O ocidente quer destruir todos os países que apareçam no seu caminho rumo ao controle global total, e tentará alcançar sua meta macabra por todos os meios. O aparelho de propaganda está sempre pronto para 'justificar' qualquer acto de terrorismo cometido pelos EUA e Europa. Nenhum mecanismo internacional legal há, para proteger as vítimas. Só uma grande força pode impedir a tragédia. A Rússia é essa força. A China também. E por isso o Império está em pânico ante o despertar desses dois grandes países. Sim, dessa vez, depois de tantos séculos de dor e sofrimento, a Rússia afinal não está só. Está forte e alta, e pode afinal contar com seus amigos. Algumas das maiores cabeças do planeta estão unas com Rússia e China. Esqueçam a Europa Oriental! O maior e mais poderoso país do planeta - a China -, repete e repete: "China e Rússia são os mais importantes parceiros estratégicos uma da outra". É claro que não permitirão que o que está planeado seja comido pelas chamas da guerra. Toda a América Latina revolucionária está hoje com a Rússia, e também estão com a Rússia dúzias de outras nações independentes e orgulhosas por todo o mundo. No Médio Oriente e em África, na América do Sul e em muitas partes da Ásia, a Rússia é cada dia mais vista como uma poderosa força moral. Rússia é sinónimo de esperança. Não para os que creiam nos EUA e Europa, mas para todos que, por séculos sofreram sob o peso do tacão deles. Em todos os lugares onde falo publicamente, na Eritreia ou na África do Sul, na Índia, na China, até em Timor-Leste, as pessoas só querem saber da Rússia. O que a Rússia fará agora, para impedir mais ataques contra a Síria, ou o Irão, ou contra a Venezuela? Respondo sempre que "a Rússia está viva e vai bem. E também estão vivos e bem os amigos da Rússia, da China à Venezuela e Cuba!" Nunca perco a esperança. E repito: eu sinceramente creio que logo derrotaremos o colonialismo e o fascismo, e construiremos uma bela sociedade sobre esse planeta coberto de feridas e cicatrizes, mas sempre maravilhoso. E ela será criada sobre os mesmos ideias que hoje comemoramos e celebramos. "70 anos da grande Vitória! Obrigado, Rússia, por ter salvado o mundo! Parabéns, Rússia!" E sempre, então, arregaço as mangas e ponho-me a trabalhar, dia e noite - por Leninegrado e por tudo que minha avó defendeu, e pela Rússia e pela humanidade. 10/05/2015 * Andre Vltchek O corpo do jornalista de investigação, cineasta e filósofo Andre Vltchek foi encontrado sem vida na madrugada de dia 22 num automóvel em Istambul. |