10-07-2022"Os árabes de Lisboa e de Portugal sempre estiveram por aqui" segundo o historiador Sérgio Luís de CarvalhoO terceiro volume com que Sérgio Luís de Carvalho vem fazendo a história da capital portuguesa é dedicado à presença árabe em Lisboa: "Uma viagem maravilhosa por um legado com mais de mil anos de história". Outras novidades: Afropeu de Johny Pitts e Oh, William! de Elizabeth Strout
Segundo o historiador Sérgio Luís de Carvalho, mestre em História Medieval (1988) e Diretor Científico do Museu do Pão, que tem vindo a publicar uma série de livros em que o tema é a história de Lisboa. Após Lisboa Nazi e Lisboa Judaica, lança Lisboa Árabe. Quando se lhe pergunta qual dos três volumes seduzirá mais os leitores, considera que, apesar do interesse específico de cada um, admite que Lisboa Nazi possa "ter os ingredientes para cativar desde logo um leitor interessado em temas históricos, no geral. É um assunto mais "perto" de nós e cujos ecos e feridas ainda se poderão fazer sentir". Quanto aos outros dois, que têm uma componente religiosa maior, refere que "terão mais fôlego em termos diacrónicos, o que levará a uma visão mais "prolongada" temporalmente". O trio sobre Lisboa não deverá terminar com esta nova investigação e adianta que "é possível, até provável" novos títulos. No entanto, diz, "no caso plausível de haver continuação, tenho de pensar bem como manter o nível e a coerência do projeto".
Sentiu-se como um leitor de As mil e uma noites ao confrontar-se com todas as lendas e factos que resultam da antiga presença árabe em Portugal? A presença árabe e muçulmana em Lisboa nem sempre atrai a atenção dos portugueses do século XXI devido aos acontecimentos terroristas com que esta religião tem sido conotada nas últimas duas décadas. Este livro pode alterar essa perceção nacional? Se puder dar um contributo, por pequenino que seja... Todos os povos, culturas, civilizações e religiões têm coisas brilhantes e coisa tenebrosas. Não tomemos a árvore pela floresta, pois todas as generalizações são perigosas e desvirtuadoras. Apesar de óbvia força mediática - arma que os fundamentalistas manipulam bem -, o terrorismo não é a civilização árabe nem o Islão. São manifestações minoritárias e marginais dessa civilização e dessa religião. O que têm é muita visibilidade...
Falou-se muito há uns anos do choque entre religiões. Estas duas Lisboas que retratou - a árabe e a judaica, sob o pano de fundo da cristã - são um bom exemplo de essa colisão ser eterna? Refere que a presença árabe foi "multissecular", mas muitas vezes "varrida para debaixo do tapete" por uma certa historiografia. Quis repor essa falha? Não evita referir na Introdução o "caso do fundacional famoso milagre de Ourique", que considera ter sido "forjado três séculos depois". Também houve na presença árabe mistificações históricas? Considera que na História nem sempre é tudo a preto e branco. Quais foram os principais cinzentos com que se deparou? "Apesar de óbvia força mediática - arma que os fundamentalistas manipulam bem -, o terrorismo não é a civilização árabe nem o Islão. São manifestações minoritárias e marginais dessa civilização e dessa religião."
″Os árabes de Lisboa e de Portugal sempre estiveram por aqui″
A Lisboa Árabe vem desde o início do século VIII e só termina no século XII. Como foi a busca por "provas" dessa influência civilizacional ao fim de tanto tempo? A recuperação de Lisboa pós-terramoto de 1755 sepultou muito do património árabe. Encontrou vestígios no urbanismo e nos costumes? Pode dizer-se que a "mouraria" para onde foram relegados os árabes após a reconquista pouco teria a ver geograficamente com o bairro que mantém esse nome atualmente? Trezentos anos após a reconquista, a Expansão portuguesa faz com que muitos árabes regressem a Lisboa. Estava esquecida a ocupação anterior? Essa presença não foi ignorada nos éditos reais ou na ação da Inquisição. É uma perseguição tão violenta com a feita aos judeus? Não. Os judeus sofreram mais. Por um lado, eram um alvo mais evidente para os cristãos, havia uma maior animosidade - afinal, eram um povo "deicida", entre outros insultos e falsidades do género; por outro lado, havia o fator económico, pois os judeus (cristãos-novos) tinham, em geral, mais cabedais que os mouros, eram mais "apetecíveis" como grupo perseguido, já que a Inquisição ficava, as mais das vezes, com os bens dos acusados. O número de mouros vítimas de autos-de-fé do Santo Ofício não chega a 10% do número de judeus. Imagina possível a reedição de um Al-Andaluz? Lisboa Árabe 228 páginas
O viajante solitário visita a Europa negraNo último capítulo de Afropeu, o autor, Johny Pitts, reflete sobre os "cinco meses de viagens autofinanciadas" pela Europa com presença de descendentes africanos. É desse périplo que começa na cidade inglesa de Sheffield, continua por Paris, Bruxelas, Amesterdão, Berlim, Estocolmo, Moscovo, Marselha e a Riviera Francesa, e que tem um ponto final em Lisboa. É da capital portuguesa, em pleno Carnaval, que regressa para passar ao papel o relato do que observou durante esse tempo, narrativa que tenta fazer com o apoio da "sanidade mental muito firme que tantos homens e mulheres negras conseguiram manter [neste continente] apesar de viverem frequentemente em condições bizarras". O texto não é um ensaio, antes uma investigação em movimento, de que resulta um road book com as suas experiências e o seu jovem passado, moldado por uma cultura de "uma geração que atingiu a maioridade após a queda da URSS" e que foi condicionada por um novo tempo, adornado por livros de auto-ajuda e várias outras ilusões. Pitts cunhou este conceito, Afropeu, para contar o que observou, a que não podia faltar a visão em pessoa de um país colonialista e onde vivem descendentes desses antigos territórios ultramarinos. A conclusão desmistifica o "suposto talento espetacular de Portugal para se misturar com os Africanos", situação que já vinha sendo radiografada através das paragens anteriores noutros países. Afropeu é uma reportagem gigante sobre uma realidade ainda maior, na qual tenta por via de relatos, entrevistas e história, mostrar o seu propósito inicial.
Afropeu
Uma escavação arqueológica literária sobre o casamento O sucesso que a escritora Elizabeth Strout vem adquirindo em Portugal não acontece por acaso, e este Oh, William! vem complementá-lo. Um romance focado na vida da protagonista que é repetente na sua obra, sob o nome Lucy Barton, em que através de várias situações mostra como pode ser misteriosa a relação com um antigo marido. A narrativa desliza, em muito por mérito de uma excelente tradução de Tânia Ganho, ao longo de vários episódios de um regresso ao passado e da tentativa de explicar situações bastante nebulosas. Como se se estivesse numa escavação arqueológica, a autora permite ao leitor acompanhar o que a sua protagonista pretende: destapar uma realidade que sempre se lhe apresentou como insuficiente e em muito incompreensível. O que fica escondido num casamento, as relações entre o casal, e, principalmente, o que é um homem sob o olhar de uma mulher. Raramente se observa hoje uma interpretação do sexo masculino como aqui se verifica, muito distante de todos os estereótipos do politicamente correto imposto nos últimos tempos e que, por facilitismo sectário, distorce a realidade. Com o benefício de a ação ir decorrendo por vários lugares dos Estados Unidos, desde a conhecida Nova Iorque até a lugares recônditos daquele país. Há um segredo que é perseguido e até ao fim, sem elaborações forçadas, a protagonista vai esclarecendo de uma forma curiosa e de leitura muito agradável. Que remata com o melhor título possível: Oh, William!
Oh, William!
Francisco Cristo Carraça comentou
Se pensarmos na história do país e nos seus vários episódios, desde a sua fundação até à reconquista cristã, teremos que chegar à conclusão, que existe uma mistura na composição do povo português com origem em vários povos que habitaram o território a que chamamos Portugal. Se atentarmos na fisionomia dos portugueses, encontramos diferenças entre eles. No caso específico dos árabes, verificamos que se pusermos um árabe junto a um português, principalmente do sul do país, encontramos muitas semelhanças. Como existiu uma aculturação dos árabes que ficaram em Portugal, é natural, que os seus descendentes tenham as suas características físicas, e devido aos séculos passados até aos nossos dias, essa questão não se coloca, porque tudo se esbate com o tempo.
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