22-09-2022RUSSOS, por Francisco Seixas da Costa, diplomata e escritor
Tal como acontece, por estes dias, com a maioria dos brasileiros com quem falo, é dificil conversar com alguém que seja russo e sentir que, ao comentar a situação do seu país, essa pessoa consegue ganhar alguma distância e objetividade. Mas, ao contrário dos brasileiros, que se estão nas tintas sobre o que pensamos dos políticos de topo do seu país, os russos pronunciam-se sempre, sobre Putin ou sobre o regime russo, tendo como ponto assente que, do nosso lado, há já um “partis pris” assumido. Daí que adequem o discurso à circunstância de andarem entre nós, o que artificializa os contactos. Do que escrevi pode deduzir-se que tenho o ensejo de andar aí a falar com imensos russos. Não ando. Nos últimos sete meses, falei com três. Mas tenho pena de não ter falado com mais. Um deles reagiu como eu esperava: disse logo o pior possível de Putin, achando que eu ficava confortado. Mas pareceu-me muito sincero. O segundo russo, aliás, uma russa, nascida bem distante de Moscovo, reagiu, desabrida, contra uma leve menção à Ucrânia, tida como coio de nazis e fonte de todos os males que, nos dias de hoje, podem ocorrer à Rússia. Não falou nunca de Putin, mas admito que fosse fã. Sermos um país livre dá-nos a vantagem (alguns acham isso mal, mas não tenho o menor respeito por quem pensa assim) de poder acolher opiniões contrastantes. É uma frase batida, mas foi para isso que se fez o 25 de abril. Da terceira conversa, que tive muita pena pelo facto de ser tão breve como foi (todas foram, devo confessar), tenho uma recordação mais interessante. Essa pessoa, que não tinha a mais leve simpatia por Putin, com alguma não escondida emoção, falou-me da existência, nos dias de hoje, de “três Rússias”. Descreveu o sentimento dos russos mais velhos, muitos dos quais viveram adultos na União Soviética. A maioria não tem saudades do comunismo, têm saudades da segurança na vida quotidiana, ainda que espartana - na rua, no emprego, na saúde. Fez-me recordar o que li num livro que muito me impressionou: “O Fim do Homem Soviético”, de Svetlana Aleksievitch. Putin restituiu-lhes um pouco isso, bem como o sentimento de que no Kremlin está alguém que comunga com eles o sentido patriótico. Essa pessoa disse-me ainda uma coisa estranha: que, para essa gente, Putin é como que uma figura “religiosa”, que corporiza a nação. Será assim? Não fazia a menor ideia. Depois, falou-me de uma outra Rússia, dos mais jovens, que abominam Putin e a clique dirigente, que são globais na cabeça, andam nas redes sociais e acham todo aquele aparato burocrático uma coisa sem sentido. Segundo ele, algumas dessas pessoas estavam com Navalny, mas “muito pouca gente conhece Navalny na Rússia”. É a espuma política urbana, gente que quer liberdade, viver à vontade, viajar e ser feliz. O regime detesta essa gente, porque a não consegue “agarrar”. Essa pessoa com quem falei (há mais de dois meses) não ia à Rússia desde abril, mas disse-me que, quando de lá saiu, entre os seus conhecimentos, não tinha encontrado ninguém que estivesse convencido da utilidade da guerra, mesmo que alguns subscrevessem a teoria do “cerco” pelo ocidente e pela América, e não tivessem particular simpatia pela Ucrânia (“A Ucrânia e os ucranianos nunca foram muito populares na Rússia”). Na descrição que essa pessoa me fez de uma terceira Rússia, onde estavam bastantes amigos seus, recordei o estado de espírito de muita gente durante o Estado Novo: viviam à margem da política, evitavam “meter-se” com o poder, criticar ou apoiar quem está “lá em cima”, tentando apenas sobreviver entre as pingas e levar a vida o melhor possível. Alguns desses russos viajavam pelo estrangeiro e, sem serem ricos, tinham uma vida razoável. Talvez o efeito das sanções os venha a tirar da letargia em que vivem, disse-me o meu interlocutor. Que pena tenho de não ter tido a possibilidade de prolongar a conversa com esse russo que conheci, uma tarde, no Porto. Um homem lúcido e, talvez por isso, visivelmente triste. Não deve ser fácil ser russo, pelo mundo, nos dias de hoje. |