05-07-2022Bonga: “Não me fale da lusofonia se faz favor” por Mariana Pereira, jornalista
Em vésperas de celebrar 76 anos, músico angolano recorda a infância, a carreira e os truques para engabar a PIDE na chegada a Portugal.editor4 Agosto 29, 2018 FacebookTwitterGoogle+LinkedInStumbleUponTumblrPinterestReddit (Foto: D.R.) Assim que abrimos um dos álbuns de fotografias de Bonga aparecem recortes de John Kennedy, Muhammad Ali ou Sophia Loren. Porquê? “São os meus favoritos”, diz como um miúdo só ocultando a palavra cromos. Bonga Kuenda [José Adelino Barceló de Carvalho, conhecido artisticamente como Bonga ou Bonga Kuenda(Kipiri, 5 de Setembro de 1942), é um cantor e escritor de letras de música angolano]. É e não é José Adelino Barceló de Carvalho, campeão dos 400 metros em Portugal nas décadas de 1960 e 1970. É mais Bonga Kuenda, que significa aquele que “apanha e corre sem parar”. Como uma trama, à margem das fotografias coladas no álbum há no papel pequenas figuras recortadas e ali coladas. É ele próprio, retratado a correr. Seguimo-lo então desde a sua infância no Kipiri, correndo em terra batida. Lá está ele aos 12 anos, fotografado depois de “quebrar o joelho”. Eterniza-se o momento para o miúdo aprender, e não repetir. Lá está ele depois da vinda para o Benfica, em Lisboa, aos 23 anos, de onde acabaria por sair para o exílio na Holanda. Holanda? Bonga vai buscar o recorte de jornal que mostra como o músico Bonga foi então descoberto como o campeão Barceló de Carvalho. E ri-se (sempre). Continuamos a correr até aos 75 anos – sempre com Angola em pano de fundo -, que em breve se tornarão 76. A passagem será celebrada num concerto-homenagem no próprio dia, 5 de setembro, na Aula Magna. Guarda as cartas que lhe envia quem o ouve? Quando há casos específicos, porque houve um poema lindo maravilhoso de alguém que narrou o espetáculo, filhos que nasceram com a música, mulheres que reencontraram o marido, velhos na agonia quase a morrer que põem a música do Bonga. Ainda no outro dia, em Braga, um homem de cadeira de rodas queria ver-me. Em casa era a filha que o ajudava e ali ele levantou-se da cadeira e andou. [Guardo] Principalmente a lágrima no canto do olho deste povo fervoroso, cada vez mais jovem, que me vem ver nos espetáculos e está ali com toda a emoção a cantar. Mesmo quando é em kimbundu, não é? Principalmente quando é em kimbundu. Eu quebrei o gelo daquela coisa do preconceito, porque há muita gente que não fala inglês e aceita a música inglesa normalmente. Porque não aceitar a minha música que é em kimbundu, que eles não compreendem, da mesma forma que não compreendem o inglês? Tive de me impor. Mas tenho consciência de ter rebatido essa lacuna, para diminuir este preconceito de se pensar que há culturas superiores. Vendo mais discos no exterior do que na minha terra de origem, onde eles falam kimbundu. Lembra-se de sons da sua infância no Kipiri? É o que mais me lembro. São os sons do barulho das crianças na rua, que fazem falta aqui, não é barulho ensurdecedor, não me apoquenta. Esse barulho da criança com vida, que brinca, que chama outra, o pregão das coisas que se vendiam, e depois o próprio cheiro do mato, eu nasci lá. Era mesmo considerado matoense, pejorativamente, por uma série de indivíduos assimilados à cultura europeia, colonial. Esses barulhos fazem-me falta, como o cheiro do mato, para não falar dos comeres tradicionais, típicos. Oh my God. Fotografado depois de “quebrar o joelho”, aos 12 anos, para não repetir as tropelias. (Foto: João Silva/Global Imagens)
O Bonga cozinha? Sim. Aprendi com a minha avó. Tive a curiosidade [e ela]: “Não, homem não, homem vai fazer compras.” Eu disse: “Avó…” Como criança já se apercebia de que falar em kimbundu e tocar ou cantar como faziam era também uma forma de resistência? Nós demo-nos conta disso muito cedo. Já tínhamos o exemplo daqueles que antes de nós conservaram isso e tocaram esses batuques, que eram pejorativos – o batuque passou a ser de salão, em resultado da nossa luta. Os instrumentistas e os turmistas – turmas que vinham em volta das casas nos bairros periféricos da zona de Luanda – tocavam temas críticos da sociedade. O Carnaval é a maior festa que nós temos em Angola, mas não era apresentar o desfile nem ao Presidente nem aos governadores da época colonial. Era um Carnaval que se vivia em cada bairro com o seu grupo de 200, 300 pessoas, de casa em casa, a tocar os temas críticos da sociedade em que se vivia: a falta de água em casa, os teus filhos são mal-educados, a negritude para ti já não interessa, a mulher que para melhorar a raça casou-se com um branco… Temas lindos de morrer, não queira saber. Isso era o Carnaval. Nós acompanhávamos, era a liberdade total. Eram dos únicos momentos em que podiam fazer isso abertamente? Evidentemente. Tínhamos uma cláusula dada pelo colono da altura. Nós temos muita música que vem do Carnaval. Os velhos compuseram coisas incríveis, e reivindicativas também. Ao mesmo tempo era um miúdo que corria e corria. Porque é que corria tanto? Porque tinha essas condições natas. Primeiro, porque gostava muito de correr, e depois no bairro era uma espécie de chefe de turma. Havia qualquer coisa a fazer e eu… puf, já fui, e eles vinham atrás. Mesmo quando a gente ia roubar frutas a um quintal, ninguém me apanhava. Depois fazíamos competições desportivas de bairro contra bairro. Fazíamos atletismo, que era o que mais gostávamos. Púnhamos uma estaca aqui e uma estaca ali e íamos a correr. Eu distanciei-me dos colegas. Depois fomos federados mesmo. Foi aí que pulverizei os recordes de Angola e a pedido do Benfica venho para Portugal. Lembra-se da sensação de correr nos musseques? E de que maneira. Porque ali não temos pista, é areia. É complicado saber correr: tem uma montanha, um buraco, era correr aos ziguezagues. Mesmo na pista do estádio único que tínhamos, os Coqueiros [em Luanda], tínhamos de saber, porque era uma pista de cinza com areia e carvão. Cartão da Associação de Atletismo de Lisboa, quando chegou ao Benfica, aos 23 anos. (Foto: João Silva/Global Imagens) Quando o Benfica o convidou podia não ter vindo? O meu pai só aceitou por uma questão sociopolítica. Porque nós não tínhamos futuro, o nosso futuro era ser funcionário público depois da tropa. Com os nove irmãos que éramos, ele e eu é que trabalhávamos, que levávamos o kumbú [dinheiro] para casa. Mas ninguém tinha necessidade nenhuma de sair de Angola, porque vivia-se muitíssimo bem. Não estou a dizer que a colonização era boa, estou a falar da nossa vivência na família africana; e não digo só o pai, o avô, não, é o vizinho, que também faz parte da família, é um aglomerado de pessoas que te frequentam, que te ajudam. Nunca pensei que a gente ao passar por uma pessoa na rua não cumprimentasse, isso é a Europa. Disse isso logo na primeira carta. O que é que dizia a sua primeira carta? “Ó pai, sabe uma coisa? Aqui cada qual por si, Deus para todos. É a tónica aqui desse sítio.” E o meu pai respondeu-me: “Então tens de ter dinheiro sempre, que a gente daqui não te vai mandar nenhum.” Encontrou um Portugal racista? Encontrei um Portugal à toa, no sentido desta convivência lusófona. Portugal tinha de resolver melhor o problema da convivência dos povos que eles foram descobrir. Os que exploravam aqui eram os mesmos que exploravam lá em baixo. Por isso é que eu disse: espera lá, eu não vou contra o povo português, porque quando eu vou para as barracas, para os bairros típicos daqui há miséria, há fome, há desgraça, há descontentamento. São os maiorais daqui que colonizam a minha terra, portanto não sou contra os portugueses, decididamente. Então fui arranjando amigos, já havia aqui uma data de indivíduos que já conviviam entre si, sobretudo no desporto. Foi uma das boas coisas que me aconteceram na vida: com as viagens que fazíamos, e onde iam sempre uns elementos que a gente não sabia quem eram, afinal eram os bufos, os informadores da DGS. Bonga em Atenas, depois de bater o recorde português dos 400 metros. (Foto: João Silva/Global Imagens)
Quando percebeu que eles estavam à sua volta? A gente percebeu imediatamente. Quando tínhamos conversas em que estávamos dois, três africanos havia um que estava lá a esgaravatar no chão. Nós tínhamos umas tocatinas entre nós e havia sempre um convidado que ninguém sabia quem era, que fazia os relatórios. Sempre que vinha alguém de Angola a gente fazia uma festa privada, e se eles não estavam lá dentro estavam fora, a ver quem entrava. Era um controlo muito chato. E não deixavam de fazer nada por causa deles? Não, não. Eu por exemplo saía e levava cartas clandestinas para serem entregues lá fora. Iam nas cuecas. Não ia ser revistado. Como é que percebeu que tinha de sair de Portugal? A minha célula, que vivia em Luanda, já tinha sido engavetada. E há um indivíduo que vem de Angola, o André Mingas, que me diz: “Tens de bazar ontem.” Nessa mesma noite eu peguei o avião e bazei. Na fronteira: “Então, mais uma prova?” “Não, vou comprar discos à Holanda.” Quando o avião já ia a sobrevoar fiz um adeus com a mão fechada. Esteve dividido por uma obrigação de estar em Angola naquele tempo ou sentia que estava a fazer o que devia? Não, eu estava fazer o que devia fazer, e muitíssimo bem. Essa fase foi bastante agradável. Em Angola não és tido nem achado e não te dão espaço. Os seus primeiros e míticos discos ‘Angola 72’ e ‘Angola 74’, neste ano reeditados em vinil. (Foto: João Silva/Global Imagens)
O Angola 72 foi então a sua luta? Foi o pontapé de saída para uma série de obras. Eu nem pensava ser artista. [O disco] é a minha vivência de 23 anos no calor quente dos bairros suburbanos de Luanda, tudo quanto eu vi, assisti, participei, tudo aquilo em música. Quando chego à Holanda, com os cabo-verdianos, com as tocatinas deles, a certa altura o indivíduo que era proprietário da Morabeza Records [Djunga d’Biluca], que gravava todos os cabo-verdianos, disse: “Tu com essa voz rouca, porque é que não gravas?” Acabei gravando mesmo. Tudo quanto eu tinha saiu, de informação, de acontecimentos, e sobretudo de apelos, em kimbundu. Assim era uma mensagem fechada? Absolutamente. E como é que os angolanos tiveram acesso ao disco? Os discos do Djunga d’Biluca iam para Angola normalmente, pelos embarcadiços. E oAngola 72 chegou lá, só que foi proibido logo a seguir. Os próprios informadores é que traduziram aquilo: “Eh pá, cuidado…” A mudança de nome de Barceló de Carvalho para Bonga Kuenda não foi só para não ser descoberto. O que significa? Era um nome clandestino, em primeiro lugar. Significa “apanha e baza”, ou “apanha e corre sem parar”. Tem a ver comigo, estou sempre na brecha. Documento do Consulado Português em Paris que dá conta do nome artístico de Bonga. (Foto: João Silva/Global Imagens)
Ainda vive assim? Felizmente. Continuo a ser solicitado. Muita gente deixou de gostar do Bonga porque recebeu o dinheirinho dos políticos da minha terra de origem. Tentaram complicar. Mas não complicaram tanto, na medida em que eu tinha empresário francês, casa de disco situada em França, e a maioria dos espetáculos eram realizados da França para cima. O que significa para si a França? Abertura, a maior abertura facultada. Grandes recordações, vivências com os artistas franceses, que não se fecham num pedestal, abrem as portas, com participações, duos. Quem me dera a mim que os angolanos fossem assim em matéria de realizações de obras musicais e de não compromisso com as esferas políticas. A França foi aquela coisa para Miriam Makeba, Manu Dibango, Salif Keita, Cesária Évora, mesmo a Linda de Suza, portuguesa. Voltemos a Angola. O que acha do novo presidente, João Lourenço? O João Lourenço chegou. E tem muita coisa para resolver deixada pelo seu antecessor. Esse “chegou” é de alivio? Tomando em conta os males causados aos angolanos e à própria Angola é chegou bem. Ele próprio já pôs o dedo na ferida, o que é muitíssimo bom, porque nós estávamos habituados a virar o disco e tocar o mesmo, com os mesmos proprietários do país, os únicos beneficiários da Angola independente. Estamos à espera que esses dinheiros sejam aplicados não em edifícios para inglês ver mas em creches, escolarização, medicamentos, hospitais e naquele povo que está triste. A gente vê nas ruas. Muita coisa degenerou. Não tínhamos tantos assassinatos e assaltos, é o povo que está precipitado: “Como é que vou comer amanhã?” Mas que ele chegou bem, chegou. (Foto: João Silva/Global Imagens)
O Bonga é conhecido por ter dialogado com quem concordava e não concordava, Jonas Savimbi, Samora Machel ou o ex-presidente angolano José Eduardo dos Santos. Falei com todos eles, tive conversa amena, conversa de africano para africano. Valeu sempre a pena? Nalguns sim, noutros achei que não devia ter lá ido. Não devia ter ido ao José Eduardo dos Santos? Não. Faltaram muitas coisas e principalmente a coerência da pessoa no sentido dos propósitos que foram pronunciados. Gosto das pessoas quando são coerentes. Está a falar do período pós-independência e do que Angola se tornou depois? Evidentemente. Eu não sou dos que estão cá fora e veem a banda passar. Eu mando os meus recados em função do conhecimento que tenho da realidade do país. Bonga quando fez a tropa. Tinha cerca de 20 anos. (Foto: João Silva/Global Imagens)
Mesmo depois da independência teve músicas proibidas, certo? Sim, e de que maneira, nem passavam. Então depois de ter ido ver o [líder da UNITA Jonas] Savimbi… Como é que viveu esse período? Na pós-independência em Angola inventou-se uma guerra para retirarem dali muita gente que não convinha, e para estarem mais a vontade para instalarem o marxismo-leninismo. Esta foi a grande realidade. Eu estava fora e perguntei: “Mas porquê a saída dessas pessoas todas, funcionários públicos, advogados, oficiais? Aviões fretados? Quem é que anunciou essa guerra? A que propósito? Travem os revolucionários. A população é maior do que os revolucionários.” E não travaram. Quando eu vim para aqui os hotéis no Estoril estavam cheios. E eu: “Quem é que pensou assim? Não há guerra nenhuma.” Fui para Angola para ver e quando chego estou com os tais comandantes que vieram da guerrilha e estou a vê-los. Havia uns tipos honestos que diziam: “A gente nunca pensou que Angola estivesse assim; olha aquela criança com aquele carro.” Está a dizer que não tinham noção do que era o país? Nem pouco mais ao menos. Eles chegaram e tiveram uma curiosidade terrível. “Isso é assim? É nisso que vamos mandar?” Eu falei com os chefes. Falei com o Agostinho Neto, porque eu era o artista conhecido, que tinha feito o disco Angola 72, que mobilizou muita gente. Mas eu disse-lhes: eu não fiz a música para mobilizar carne de canhão. Responderam-lhe? Disseram: “Ah, você é um vendido.” Mas encontrei alguns que eram conscienciosos e já tinham capacidade de análise. A maior parte deles morreram, como que por azar. Pode recordar como é que o seu encontro com Jonas Savimbi teve tanto impacto? Havia milhares de pessoas mobilizadas para ver o espetáculo, havia jornalistas de todos os órgãos de informação. Eu não quero fazer promoção do Savimbi, mas ele não é aquilo que se disse. E como se viu depois que ele se matou – vinham matá-lo e ele matou-se primeiro para não ser humilhado [a versão oficial é que foi assassinado] -, a UNITA cresceu, cresceu, porque era anticomunista e os EUA na primeira linha davam todo o apoio. Eu vi o Savimbi falar com o Reagan tu cá, tu lá. “Vais mandar o Stinger [míssil]? Não vais mandar o Stinger?” E mesmo tendo a parte sul de Angola sob controlo, que é a maior, ele nunca quis dividir aquilo. Para mim isso tem uma importância… A Coreia dividiu-se. Comecei a ter uma amizade por ele. O Agostinho Neto foi o primeiro a dizer que não podia haver eleições. “Porquê, senhor Presidente?” “Eles ganham, são mais.” Podia ser só isso. Mas depois há o 27 de maio de 77, que é a pior bodega que aconteceu na África Austral. Porque é que aquilo aconteceu? Yah. Continua a ir a Angola? Não vou com tanta frequência como anteriormente. Mas considero que Angola é nossa, o povo é nosso, temos todo o direito e a obrigação de participar e estar com ele. Há um impedimento que resulta de uma política levada a ferro e fogo que tende a acabar. Hoje o presidente já não vai com aquela comitiva toda, com metralhadoras, já não é assim, já esta a diminuir esse lado militarista e sanguinário, o que é muitíssimo bom para Angola e para os angolanos. E há miúdos que falam. Há jornais que saem com títulos incríveis, a retratar a sociedade. Mas há outras grandes evoluções a aplicar imediatamente para que o povo seja amparado. Tem vontade de fazer um grande concerto em Angola neste momento? Tenho sempre vontade de fazer algo que seja espontâneo, natural e desejado pelos indivíduos detentores do poder porque significaria que eles estão mais relaxed, mais à vontade e… mais humanos, vamos admitir. Mas não era só o Bonga sozinho. Nós ainda estamos naquela fase: enquanto houver um partido a decidir, e normalmente mal decidido… Quer ver essa? Os mais inconvenientes na minha terra são os doutores, engenheiros, advogados, porque são imitadores da cultura do outro, e isso é triste. E são incapazes de ter uma conversa com a mãe que é lavadeira, com o pai que é analfabeto, têm vergonha porque são complexados, e estão sempre com a gravata. Quarenta graus à sombra e ele está com uma gravata quase a sufocar e um casaco que veio de Londres, e as falas idênticas a qualquer telejornal em Portugal. Que vergonha! Esse tipo de indivíduos são prejudiciais à nossa coesão artística, social, psicológica. E são eles que são os professores, os generais, os ministros. Onde é que a gente vai parar? Esse é que é o grande recado do Bonga. (Foto: João Silva/Global Imagens)
Como foi passando aos filhos e aos netos essa maneira de ser africana de que tanto fala? É a maneira de ser em casa. Não digo nada a ninguém, eles veem. Se não vê é porque não está atento. A melhor comida deles é o funge. Quem faz? É o pai. E depois a tal respeitabilidade. A gente não dá porrada nas crianças, nem pouco mais ou menos. Eu faço como o meu pai: a gente olha e o olhar quer dizer quase tudo. Só aquele olhar: já lhe bati. Eu fazia a mesma coisa. Quando eu era miúdo o meu pai só olhava. E depois, em termos de educação tínhamos uma coisa bonita, a educação da rua. Eu sou um privilegiado, fui educado na rua também, pelos pais e pelos avós dos outros, que nos viam a fazer uma asneira: “Ó meninos!”, davam-nos um puxão de orelhas, e a gente tinha de se calar, ir para casa e não dizer nada. Isso é fabuloso. Como é que vai ser este concerto no dia 5? Surpresas. Vou cantar o quê? As mais badaladas, as que estão na boca do povo, mas principalmente vai ser festa. Primeiro, é a festa do meu aniversário, e depois estar ali com pessoas que me estão a dizer assim: “Você é gente, é pessoa, você deu-nos coisas maravilhosas, continua a dar.” A partir daí tu estás disposto e disponível. Venha o champanhe, os amigos, os antigos, os novos, principalmente essa miudagem que eu não acreditava que iam reagir assim e que me grita na rua: “Mariquinha vem comigo para Angola.” É bem tratado aqui em Portugal? Sou. Vá comigo ao mercado e vai ver, vou comprar a mandioca, os peixes, a carne, e vai ver como me tratam. Eu sou um privilegiado porque vou ao restaurante e é o patrão que vem, tratam-me bem. O que não quer dizer que não haja preconceito, existe sim senhor. Olhando para os altos cargos e vendo a ausência de não brancos? É disso que fala? É um mal que vem de longe e deram continuidade a um certo preconceito que existe e, portanto, não há a promoção normal dos não brancos, e isso chateia-me sobremaneira. Portugal tem a responsabilidade de ter ido lá, de ter fabricado gente de lá – quando digo fabricado se calhar é pejorativo, mas entrosou -, fez filhos, muitos voltaram, com a mesma tónica de instrução. Onde é que eles estão? Ponham lá os homens a funcionar. Só há um que eu conheço, que está no CDS [Hélder Amaral]. Não me fale da lusofonia se faz favor. Vamos à Alemanha e há miúdas com programas de rádio, de televisão, na França então… Por isso é que eu não gosto do termo lusofonia, CPLP. “Ai falamos todos em português.” Está bem, mas eu nunca fui a tua casa. Ao contrário, já entraste na minha. Porque eu abro a porta às pessoas, e quando abro não estou a ver se é branco, preto, azul, encarnado, branco. Nunca entrei na casa dos meus vizinhos aqui. Não sei se temos de considerar aquele portuguesismo ou então aquele estado preconceituoso e receios e medos. Como é ter 75 anos? Eu não tenho uma vida que se chama vida normal. Nunca me casei. Casei-me com a música. Até a dikanza [o instrumento que nunca deixou de tocar, espécie de reco-reco] dorme comigo na cama. E quando há um apelo para a música eu vou imediatamente. Aliás, ia. Agora com 75, não é que me custe, mas não sei, já sou mais exigente comigo próprio. (Foto: João Silva/Global Imagens)
Já não vai a todas? Não vou. Há coisas que não merecem a pena. Que façam os mais novos, se aprenderam alguma coisa com o que a gente fez. Mas procurando no meio disso tudo ser feliz. Ah, sim. Não abro a porta para qualquer pessoa que eu não conheça. Antigamente abria. Já não beijo qualquer mulher. Uma vez, debaixo da língua, a menina trazia um comprimido. Finge que me vai dar um beijo aqui [cara], passa para aqui [boca], e há um tipo que a empurra: “Kota Bonga, vê o que ela tem debaixo da língua.” Luanda. Estou a falar dos anos 1980. E depois aquelas precauções que a gente tem de ter. Não podemos ser ingénuos. O mundo está a tornar-se mau, com ingerências abusivas nas vidas privadas das pessoas, criam-se histórias que não existem. (Diário de Notícias) Por: Mariana Pereira |