23-06-2022Coentro, Judeus, Mouros e a Inquisição - ORGE CASTELLANONa fria tarde de 7 de Janeiro de 1486, na praça principal de um pueblo chamado Teruel, no leste da Espanha, o Tribunal da “Santa” Inquisição condenou à morte o converso Juan Sánchez de Exarca por suas ‘atividades judaizantes’ Entre as práticas heréticas mencionadas nos registros da Inquisição estavam a sua aderência ao Judaísmo, seu repúdio a Jesus em favor de Moisés e sua “forma de alimentação hebraica”, como a preparação de um prato do Sábado com o nome de adafina. Cada semana, a partir do meio-dia da Sexta-Feira, os judeus espanhóis cozinhavam em fogo baixo esse farto e nutritivo prato durante cerca de 14 a 18 horas. Seus componentes variavam dependendo da riqueza do lugar; algumas variações continham cordeiro, outras vitela, com a maioria contendo ambas, algumas inclusive com pescado. Quando a carne se tornava inacessível , se fazia uma versão vegetariana . Pedaços de cebola, alho moído, grão-de-bico, cenouras, nabos e ovos cozidos davam liga ao prato. Especiarias como o cominho, o tomilho, a pimenta preta, o cravo-da-índia e o açafrão proporcionavam corpulência e aroma. Um último ingrediente de rigor dava a esta delícia sefaradí um sabor distinto: o coentro. Algumas receitas usavam as folhas aromáticas das erva, espalhadas na parte superior. A receita de Juan Sánchez de Exarca levava um punhado das sementes da planta, moídas. Às vezes conhecido como salsinha chinesa, o coentro (Coriandrum sativum L.) – hoje um elemento essencial da cozinha do sudeste asiático e sul-americano – era onipresente na cozinha judaica espanhola medieval, um costume culinário compartilhado pelos muçulmanos na Península Ibérica. A planta, originária do sul da Europa, foi cultivada em toda a Ásia e Norte da África durante milênios. As primeiras sementes de coentro que já foram desenterradas se contravam nos túmulos de Nahal Hemar, na Palestina, perto do Mar Morto, datando de por volta do ano 6000 AEC. A planta era conhecida pelos antigos israelitas como gad no Tanakh e kusbar na Mishná. Na Torá, é mencionada duas vezes, ambas as vezes sendo comparada com o maná. Em ~Exodo 16:31: “A Casa de Israel o chamou maná, e era como uma semente de coentro, e em cor, era como o bdellium [resina de goma]. O povo ia e o recolhia, o moía entre as pedras de moinho e o golpeava em, o servia em um prato e dele se faziam pastéis.” Além de utilizar o coentro por seu valor nutricional e saboroso na cozinha, os antigos egípcios a usavam amplamente por suas propriedades afrodisíacas e medicinais. O usavam com tanta frequência que aparece no extenso Papiro de Ebers de 1550 AEC. A tumba de Tutancâmon estava cheia de sementes de coentro quando foi violada. Na Idade Média, os judeus e os mouros empregavam a erva picante em virtude de suas propriedades estimulantes, refrescantes e digestivas. Servia para prevenir e eliminar a flatulência, ocultar o saber dos purgantes e se usava como chá para as querelas urinárias. A evidência médica do uso generalizado da erva está gravada nos livros de receitas do século XIII escritos em árabe. Da época ilustre, sobreviveram dois livros: Relieves sobre las mesas, Sobre las delicias de la comida y los diferentes platos escritos pelo erudito murciano Ibn Razin al-Tugibi, e o Kit?b al-tab?j, um livro de cozinha andaluza de autoria anônima. Este último ilustra a proximidade da vida cultural e religiosa que comparilham muçulmanos e judeus. O manuscrito, atualmente disponível na Biblioteca Nacional da França e catalogado como Arabe 7009, recettes de cuisine, tem 543 receitas, das quais 112 contém coentro. O livro está fortemente influenciado pelo conhecimento médico da época baseado na sabedoria clássica da Antiguidade de homens como Galieno, Hipócrates e Dióscorides, quando a Igreja Católica na Europa desencorajou estes princípios colinários, o que mais tarde ajudaria a dar forma ao regime e pautas científicas de saúde de Maimônides. Inclusive, há uma seção dedicada a todos os ingredientes e os benefecíod que concedem à saúde, assinalando: “O coentro entra em todod os pratos e é a especialidade do ‘tafaya’[guizado de cordeiro ao molho de coentro] e ‘mahshi’ [berinjelas salgadas com especiarias], porque vai bem com os alimentos no esômago e não passa rapidamente antes de ter sido digerido.” “A maioria dos médicos na Idade Média eram judeus ou muçulmanos. Para eles, a comida era medicina e alimento” disse Hélène Jawhara Piñer, autora de Sephardi: Cooking the History. Recetas de los judíos de España y la diáspora, desde el siglo 13 en adelante. “Um não era mais importante que o outro. Era essencial para ambos os grupos mater a conexão entre a saúde, a nutrição e a cozinha.” Além da execução de Juan Sánchez Exarch , desde o século XV em diante, um número significativo de judeus conversos seriam queimados publicamente na fogueira unicamente por observar hábitos alimentares judaicos. Em muitos casos, compartilhar receitas, ceiar com cristãos-velhos, armazenar artigos específicos como berinjelas, ou açafrão e, inclusive fritar com azeite de oliva no lugar da menteiga, mais barata, fora o suficiente para justificar a culpabilidade dos “réus” ante os tribunais inquisitoriais. Muitos cristãos-novos, no entanto, não estavam preocupados com os riscos a pesar das perigosas consequências que acarretavam tais práticas. Para eles, manter viva sua herança judia e seu Judaísmo significava participar de atos simples e modestos – porém significativos – da dissidência culinária. Como se observa no livro de David Gitlitz e Linda Kay Davidson A Drizzle of Honey: The Life and Recipes of Spain’s Secret Jews: “para a família convertida que luta tanto para manter suas tradições como para se evadir da Inquisição, a preparação de cada refeição de Sábado ou prato de matzá para a Páscoa foi por sua vez um ato desafiador contra as pressões de assimilação e os riscos da divulgação e uma afirmação de orgulho na preservação de sua herança familiar e religiosa.” Um grande número das receitas pelas quais estes cripto-judeus foram acusados de, geralmente por vizinhos, amigos e servos, incluíam o coentro. Gitlitz e Davidson narraram receitas de muitos destes individuais sefarditas “culpados de heresia” que se recusaram a serem limpados étnica e religiosamente. O guisado de berinjela e cebola de Isabel González usava um punhado de folhas secas de coentro; a caçarola de pescado e cenoura dos González vinha com três ramos frescos picados; o grão-de-bico e mel com coentro de Isabel García contava com ¾ de um copo da erva. O poder identificativo dos alimentos também surge durante a Idade Média na literatura espanhola. O coentro é mencionado de várias formas em muitos casos poéticos entre os costumes nutricionais e culinários estreitamente associados aos sefarditas. Por exemplo, na novela dramática do começo do século XVI de Francisco Delicado Retrato de Lozana: La lujuriosa mujer andaluza, a protagonista, Aldonza, conhece algumas mulheres conversas pouco após sua chegada a Roma. Receosas de revelar muito sobre si mesmas, visto que pouco conhecem a mulher, decidem colocar à prova o Judaísmo de Aldonza pedindo a ela a receita de bolinhos doces ou cuscuz. A tarefa era determinar se Lozana usava azeite de oliva e coentro para preparar os pratos, ingredientes que revelariam sua identidade judia. Quando Lozana começa lhes dar as instruções, a primeira pergunta que faze-lhes é: “E tens coentro? Se é bom, eu colocaria um pouco de farinha e muito azeite, e te farias um recipiente inesquecível, mesmo depois de morto.” A predileção ou desgosto dos judeus espanhóis para com alimentos específicos também tomaria forma entre as composições coletivas de poemas de baladas populares chamadas Romanceros y Cancioneros (cantos poéticos). O coentro também está presente em muitas destas obras transmitidas oralmente que, com frequência utilizavam metáforas culinárias para sinalizar a afiliação religiosa ou enfatizar o status social entre os cristãos antigos, os novos e judeus: a comida denota privilégio e poder. O coentro perderia seu lugar de honra dentro das cozinhas sefarditas ao longo das gerações que se seguiram. A erva robusta e picante foi finalmente substituída por salsinha na Diáspora. Sem persguição inquisitorial para os acometer, os judeus que encontraram refúgio no norte da África e no Império Otomano utilizaram muitas alternativas locais como substitutas, uma prerrogativa do judeu errante: adaptar-se para seguir preservando o legado. “Na Diáspora, a comida tornou-se melhor e mais alegre. As empadas se tornaram bourekas. Absorvemos, adaptamos e herdamos muitos sabores e ingredientes e ampliamos nosso extenso repertório da Espanha medieval. A adaptação é parte de nossa resiliência e enriqueceu enormemente nossa cozinha sefardita ibérica” diz Stella Hannah Cohen, autora do aclamado livro Stella’s Sephardic Table: Jewish family recipes from the Mediterranean island of Rhodes. Apesar de provocar com frequência um acalorado debate e um efeito não desejado, o coentro fez um tímido regresso em muitas cozinhas judias devido ao seu agudo sabor, sua versatilidade e distinção apetitosa. “Uso muito o coentro porque, como historiador, é uma forma de reinvindicar nosso passado sefardita e nos recorda nossos antepassados” diz Piñer. “Assim, comer é muito mais que se alimentar; é recordar a História.” Fonte: esefarad.com |