Por causa da recente declaração do escritor angolano José Eduardo Agualusa ao afirmar que Agostinho Neto, Antonio Jacinto e Antonio Cardoso eram “poetas medíocres”, decidi escrever este texto para demonstrar a relevância de Antonio Jacinto no panorama histórico da literatura angolana. Em breve, lançarei textos sobre as obras de Neto e Cardoso, “poetas que representam um papel fundamental na história das idéias e no processo revolucionário angolano” (PADILHA, 1995, p. 168).
Antonio Jacinto integra uma geração de poetas que rompe com os paradigmas coloniais e busca a valorização do homem angolano, de se pensar como cidadão e intelectual independente à metrópole. Em 1948, surge o lema “Vamos descobrir Angola”. O poeta Viriato da Cruz ilustra o momento:
“Esse movimento combatia o respeito exagerado pelos valores culturais do Ocidente (...); incitava os jovens a redescobrir Angola em todos os seus aspectos através dum trabalho colectivo e organizado; exortava a produzir-se para o povo; solicitava o estudo das modernas correntes culturais estrangeiras, mas com o fim de repensar e nacionalizar as suas criações positivas e válidas; exigia a expressão dos interesses populares e da autêntica natureza africana, mas sem que se fizesse nenhuma concessão à sede de exotismo colonialista. Tudo deveria basear-se no senso estético, na inteligência, na vontade e na razão africanas.” (ANDRADE, 1977, p. 6)
A partir daí, os poetas procuravam conscientizar o povo com planos de alfabetização e outras ações sociais, enquanto os poemas tratavam de temas próximos à realidade do país. Nascia o sentimento de angolanidade, e, com o já citado Viriato, estão, entre outros, Agostinho Neto e Antonio Jacinto. Para isso, inspiram-se na ruptura proposta pela geração modernista brasileira de 1922. Carlos Ervedosa, em seu livro “Roteiro da Literatura Angolana”, comenta que:
“Eles sabiam muito bem o que fora o movimento modernista brasileiro de 1922. Até eles havia chegado, nítido, o grito do Ipiranga das artes e letras brasileiras e a lição dos seus escritores mais representativos, em especial de Jorge de Lima, Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, Lins do Rego e Jorge Amado foi bem assimilada.
O exemplo destes escritores ajudou a caracterizar a poesia e ficção angolanas, mas é, certamente, num fenômeno de convergência cultural, que podemos encontrar as razões das afinidades das duas literaturas. A mesma amálgama humana, frente a frente nas duas margens do Atlântico tropical, em presença de condições ecológicas quase idênticas, teria de conhecer reacções e comportamentos muito semelhantes.” (ERVEDOSA, 1979, p. 72)
Com denso comprometimento ético e político-ideológico, algumas obras são melhores compreendidas em seu contexto social e histórico, como as do período primordial da angolanidade. De acordo com Octávio Paz, no ensaio “A consagração do instante”:
“Como toda criação humana, o poema é um produto histórico, filho de um tempo e de um lugar; mas também é algo que transcende o histórico e se situa em um tempo anterior a toda história, no princípio do princípio. Antes da história, mas não fora dela. Antes, por ser realidade arquetípica, impossível de datar, começo absoluto, tempo total e auto-suficiente. Dentro da história – e ainda mais: história – porque só vive encarnado, reengendrando-se, repetindo-se no instante de comunhão poética. (...) o poema é histórico de duas maneiras: a primeira, como produto social; a segunda, como criação que transcende o histórico mas que, para ser efetivamente, necessita encarnar-se de novo na história e repetir-se entre os homens.” (PAZ, 1972, pp. 53-54)
As condições para um movimento literário angolano sedimentavam-se e foi criado o “Movimento dos Novos Intelectuais de Angola”, em 1950, escorados no ANANGOLA – Associação dos Naturais de Angola. No ano seguinte, é lançada a célebre revista “Mensagem – voz dos naturais de Angola”. Segundo Ervedosa,
“O Movimento dos Novos Intelectuais de Angola foi essencialmente um movimento de poetas, virados para o seu povo e utilizando nas suas produções uma simbologia que a própria terra exuberantemente oferece. (...) Assim, os novos poetas foram cantando, com voz própria, a terra angolana e as suas gentes.” (ERVEDOSA, 1979, p. 73)
Refletindo a nova postura, Antonio Jacinto escreve “Carta de um contratado”, poema dos mais representativos da época, que retrata a angústia do angolano, longe de sua terra e das lembranças dela, longe da mulher amada, e denuncia o drama do analfabetismo:
“Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta que dissesse
deste anseio
de te ver
deste receio de te perder
(...)
desta saudade a que vivo todo entregue
Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta que te levasse o vento que passa
uma carta que os cajus e cafeeiros
que as hienas e palancas
que os jacarés e bagres
pudessem entender (...)
Eu queria escrever-te uma carta
Mas ah meu amor, eu não sei compreender
por que é, por que é, por que é, meu bem
que tu não saber ler
e eu – oh! desespero – não sei escrever também!” (ERVEDOSA, 1979, pp. 74-75)
Na geração da “Mensagem”, havia preocupação em retratar a sociedade angolana, tanto a urbana quanto a rural. A poesia estava inserida em um tempo de mudanças, a necessidade de impor a sua voz contra a repressão colonial fazia com que os temas políticos e sociais prevalecessem. Os poetas, assim, iam “construindo o coletivo plural, no futuro tão necessário para que se reconstrua a angolanidade esfacelada” (PADILHA, 1995, p. 146).
Apesar do intenso patrulhamento dos órgãos repressores portugueses, a “Mensagem” cumpriu o seu papel em apenas quatro números publicados (segundo Ervedosa). Tratando de temas sociais, da busca da infância perdida, das mudanças da cidade de Luanda e, principalmente, do nacionalismo angolano em uma época de clandestinidade, “Mensagem” marcou profundamente os poetas de sua geração e tornou-se referência para as gerações seguintes. Ervedosa argumenta que:
“Como seria de esperar, o ‘Movimento dos Novos Intelectuais de Angola’ acabou por ser alvo de repressão policial. A ‘Mensagem’ terminou a sua publicação ao fim do segundo número e o Movimento teve que se desmembrar. A maior parte desses jovens acabaria por se reunir, mais tarde, não à volta de um movimento cultural, mas já sob a bandeira de um movimento político, do qual seriam líderes o ensaísta Mário de Andrade e o poeta Agostinho Neto.
Movimento de poetas, contistas e ensaístas, foi essencialmente através da poesia que aquele grupo de jovens, no dealbar da segunda metade do século vinte, se impôs e logrou virar uma página da história da literatura angolana. (...) Apesar do fim rápido e até da pequena expansão da ‘Mensagem’, ela permaneceu, contudo, como um verdadeiro símbolo.” (ERVEDOSA, 1979, pp. 87-88)
As atividades não pararam por aí. Por causa da perseguição da polícia colonial, poucos continuaram o caminho. Manuel Ferreira atesta o caráter revolucionário daqueles que assumiram o lugar de agentes históricos:
“E todos estes fizeram da sua poesia (...) um ato de fé, (...) de fato, a afirmação de sua identidade cultural. Os poetas fazem da escrita um ato de responsabilidade no combate à violência, à repressão, à exploração, à alienação. A linguagem evolui, atualiza-se, arma-se para a expressão de novas formas conteudísticas.” (FERREIRA, 1987, p. 117)
Na virada dos anos 1950/1960, alguns escritores foram para o exílio e vários são presos. “Em 1963, os escritores Antonio Jacinto, Luandino Vieira e Antonio Cardoso são condenados a catorze anos de prisão e desterrados para a colônia penal do Tarrafal.” (ERVEDOSA, p. 97) E aqui iniciamos a análise sobre o livro “Sobreviver em Tarrafal de Santiago”, de Antonio Jacinto.
Lançado em 1985, “Sobreviver em Tarrafal de Santiago” reúne poemas realizados durante a longa passagem de Antonio Jacinto no Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. Com todos os poemas datados, temos noção da angústia do poeta, já exposta no título do livro, ao resistir na manutenção dos seus ideais, o apreço à liberdade e a poesia como tema para combater a solidão em um exíguo espaço.
Dividida em três partes, trata-se de uma obra “em que a memória e a reflexão se fazem presentes, o livro é, sem dúvida, um dos momentos mais iluminados da trajetória artística de Jacinto, poeta cuja referência é imprescindível quando se fala da literatura angolana contemporânea” (MACEDO, 2007, p. 117).
Na primeira parte, “Tarrafal em redor”, os poemas tratam daqueles que levantaram suas vozes contra a ditadura salazarista e o fim do regime colonial. Por isso, foram fortemente perseguidos e sofreram pesadas punições, “de forma que o doloroso itinerário apresentado pelo livro é também o caminho de todos os nacionalistas cuja voz a opressão do colonialismo tentou silenciar” (MACEDO, 2007, p. 117).
Apreendemos que o forçado exílio é cantado pelo eu lírico, que versa o drama dos companheiros de luta rumo ao distante campo de concentração:
Neste navio x.......................ancorados
Somos náufragos ...............embarcados
Oh! Navio!
Oh! Náufragos da terra longe!
Oh! Terra longe!
Oh! Terra!
Oh! (JACINTO, 1985, p. 19)
Interessante percebermos a presença de temáticas predominantes na literatura cabo-verdiana, como o terralongismo do poema anterior “Neste navio embarcados”, a insularidade e o sentimento de evasão. Sobre esta influência, assumida pelo próprio poeta, Jacinto, em entrevista a Michel Laban, comenta que:
“Isso aí, são versos escritos noutras circunstâncias – são escritos no Tarrafal, num mundo muito fechado, também, concentracionário, longe das realidades da terra, com outra realidade, deixados influir, também, pelo ambiente cabo-verdiano: vão se lendo novas obras de autores cabo-verdianos e aí vai-se compreendendo o ambiente que dita essa literatura cabo-verdiana. A insularidade pesa sobre nós, porque nós temos uma ilha e, dentro da ilha, uma povoação, dentro da povoação, um campo de concentração... Esse isolamento é muito elevado.” (LABAN, 1991, p. 170)
O espaço concentracionário citado pelo poeta, sentimento comum aos cabo-verdianos em razão dos limites das ilhas, “o limite à esquerda / Mar / o limite à direita / Mar” (JACINTO, 1985, p. 31), incorporado por ele diante da experiência no espaço exíguo e asfixiante do cárcere é explicitado no poema:
“Cá vamos
Em Santiago, Cabo Verde
Embarcados
Mais precisamente
No Tarrafal
No Campo de Trabalho Chão Bom
Ou
Mais concreto
No pavilhão D
Caserna 2
Dos reclusos políticos de Angola” (JACINTO, 1985, p. 22)
O isolamento imposto pelo cárcere é tratado em diversos poemas, cujas datas constantes ao final de cada um, aumentam o incômodo de quem os lê e oferecem a exata dimensão da longevidade da clausura. Ao atentarmos para o próprio nome da prisão, Campo de Treinamento Chão Bom, nos causa inquietação. Além disto, destacam-se, também, características e limites geográficos em poemas com a presença das ilhas do Fogo e do Sal, assim como a impossibilidade de partir, faz com que o poeta se aproprie do desejo de emigração cabo-verdiano e ilustre a sua saudade:
“A vela no mar
escreve geometria de espuma
- partida de quem fica
e as nuvens ao sopro incessante vão
dos alísios mandos
- viagem de quem não partiu
Descem saudades (...)
No Tarrafal, anoitece...”
C.T. Chão Bom, 26.11.66 (JACINTO, 1985, p. 26)
“A ilha em frente é uma saudade que se esboça (...)
Cai o sol por trás da ilha ao entardecer (...)
Transido, morre o sol.
Anoitece.
A Solidão acontece.”
C.T. Chão Bom, 9.1.67 (JACINTO, 1985, p. 27)
“O mar
As ondas
As ilhas
E as aves
edificam solidão
e a solidão tende para infinito (...)”
C.T. Chão Bom, 5.4.67 (JACINTO, 1985, p. 31)
“Era o Oceano! Era o Oceano!
E a solidão, ano empós ano.”
C.T. Chão Bom, 9.1.72 (JACINTO, 1985, p. 42)
No diálogo proposto por Jacinto com a literatura cabo-verdiana, dois escritores ícones são lembrados. A resistência, que beira a teimosia, do agricultor em plantar em uma terra ruim remete ao romance “Flagelados do vento leste”, de Manuel Lopes:
“na folhagem resse-
quida e ferida
- memória do vento leste
a paisagem não esquece!
Feijão pedra
............pedra
Ó homem de todo o ano
na teima
na teima que a vida dá
a teima é vida na vida (...)” (JACINTO, 1985, p. 28)
E a homenagem a um dos mais combativos poetas cabo-verdianos na luta colonial em seu país, Ovídio Martins, e sua crença no ilhéu são celebrados por Jacinto:
“Do chão de pedra
brotam pedras feitas casas
Das casas de pedra
os homens que são pedra
nascem
Das ilhas de pedra
os homens vão enluarar o mundo (...)
Até quando? Até quando?
Até quando os homens-pedra quiserem!” (JACINTO, 1985, p. 43)
Em “Tarrafal Interior”, a segunda parte, os poemas são incisivos na declaração à liberdade, ao sonho e na postura contrária ao confinamento. O caminho à independência angolana torna-se irreversível:
“Nem a chuva dissolve estas pegadas
nem o tempo as tem sepultadas
remonta ao xisto a força da verdade
renasce o sol do teu seio – LIBERDADE!” (JACINTO, 1985, p. 49)
As forças coloniais estão fragilizadas diante da determinação dos angolanos. A utopia por um país independente alimenta o eu lírico, que utiliza o fazer poético como arma contra o colonialismo em um consciente exercício metapoético:
“Ó dragões de fauces sangrentas
Satãs triturando homens nos engranzos do ódio
entre o chão e as cardas das botas
procurais apagar uma a uma
as perenes chamas da esperança duma
murmura flor de sangue ou
duma poêmia imperecível
- digo-vos que sou perigoso quando
na força viril do meu verso
Espero!” (JACINTO, 1985, p. 51)
Letras em sangue, o eu lírico fortalece a metalinguagem e enrijece a posição política em prol do ideal coletivo:
“Pomos doiro são? Não são.
As palavras?
As palavras são carne
e esqueleto
e sangue
sobretudo isso – sangue” (JACINTO, 1985, p. 52)
O persistente recurso à metalinguagem nos poemas de Jacinto é comentado pela professora Tania Macedo:
“Vale ressaltar, todavia, que a metalinguagem ou a citação de outros poetas não atende a um mero exercício estético. Pelo contrário, encontramos a cada passo a expressão de uma profunda crença no humano, de forma que a poesia acaba por ser a parceira que ilumina os recantos escuros da cela, propiciando o brilho da esperança. Assim, verifica-se que a todo instante o lírico e o político se solidarizam na elaboração de uma produção liberta e libertadora – única possível de ser da poesia em nosso tempo (...).” (MACEDO, 2007, pp. 121-122)
Atento e participante na luta pela libertação angolana, Antonio Jacinto une lirismo e política em poemas de resistência à opressão colonial. Recorre a grandes nomes da literatura em língua portuguesa, tais como Manuel Bandeira e Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa), para expressar a sua dor. Logo, reivindica tudo aquilo que é negado ao seu povo.
“Choramos autenticamente por nós próprios (coitados de nós!
Teremos mais precisão, Manuel Bandeira?)
Choramos autenticamente por nós próprios
(o Álvaro de Campos bem no sabia)
Choramos autenticamente por nós próprios inautênticos
que ficamos mais pobres
e nos sentimos lesados
por nossos direitos feridos
por nossos direitos de posse frustrados
por nossos direitos à proteção
por nossos direitos à amizade
por nossos direitos ao amor
por nossos direitos à presença
por nossos direitos a uma vingança
por tudo quanto queríamos de quem nos morreu.” (JACINTO, 1985, p. 66)
Depreendemos que a poesia de Jacinto não aceita a ordem estabelecida. Questiona e enfrenta o poder vigente e tenta libertar-se de séculos de opressão. Segundo Alfredo Bosi:
"A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos, (...) Resiste ao contínuo ‘harmonioso’ pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia.
Quer refazendo zonas sagradas que o sistema profana (o mito, o rito, o sonho, a infância, Eros); quer desfazendo o sentido do presente em nome de uma liberação futura, o ser da poesia contradiz o ser dos discursos correntes. (...)
A luta é, às vezes, subterrânea, abafada, mas tende a subir à tona da consciência e a acirrar-se porque crescem a olhos vistos as garras do domínio. (...)" (BOSI, 1977, p. 146)
Em “O ritmo do tantã”, Jacinto dialoga com o poema “Quero ser tambor” de José Craveirinha, reafirma sua posição como africano, valoriza símbolos culturais locais e está sensível ao momento de libertação colonial em todo o continente africano, em um dos mais belos poemas do livro:
“Eu também sou África
tenho o ritmo do tantã sobretudo
no que pensa
no que pensa
penso África, sinto África, digo África” (JACINTO, 1985, p. 71)
Quando se encontra em momentos de desespero, chama a atenção dos companheiros de luta para não aceitarem a sua fraqueza, pois “é preciso frustrar o desânimo”. Jacinto recorre à poesia para demonstra sua indignação com a situação em que está e resiste:
“Olho-me:
Serenamente
Morri.
Alguém morreu dentro de mim. (...)
Ó, vós, companheiros, ó irmãos, de vós espero
que não me acrediteis
se me virdes ir despido de esperança
em renúncia.
É preciso frustrar o desânimo!
Morri?
Mas eu vos acompanho
(a todo o tamanho)
que a vida de novo bate à porta
como importa:
- recado de ressureição!” (JACINTO, 1985, p. 57-58)
De acordo com Alfredo Bosi, “a poesia há muito que não consegue integrar-se, feliz, nos discursos da sociedade” (BOSI, 1977, p. 143), e passa a servir como instrumento de resistência e denúncia às agruras sofridas. Mesmo encarcerado, isolado e distante dos seus pares angolanos que lutam na guerra colonial, o eu lírico não se omite, manifesta sua posição política, valoriza a união e luta com seus versos, a única arma a ser usada, na necessária mudança do mundo:
“Nas tarefas da construção do mundo
Aqui estou de novo
....................Unido
– Na procissão de vontades
Alavancas em aplicação comburente –
Aqui estou de novo
Presente!” (JACINTO, 1985, p. 50)
Mesmo longe e trancafiado, o poeta tem a poesia. Com ela, resiste e participa da revolta contra o colonialismo. A função social de sua poesia e o comprometimento com a causa libertadora não o deixam afastado da luta. O que é expresso por Irene Guerra Marques ao introduzir o livro:
“Alguém lhe acena e lhe estende amorosamente a mão. É a Poesia, a sua amiga de sempre. E o Homem, ergue-se, firme e resoluto. Lá longe, os seus poemas, ‘Carta de um contratado’, ‘Monamgaba’, estão nas fábricas, no musseque, no coração do Povo. Os seus companheiros esperam-no! Resistir! Viver para regressar!” (JACINTO, 1985, p. 10)
Em “Tarrafal lírico”, a última parte, o lirismo é predominante nos poemas. O eu lírico rebate a frieza e solidão do cárcere, canta o amor, os sonhos, a liberdade que haveria de se aproximar um dia:
“Um sonho? Ah! Dá-me um sonho
Nesta noite de frio e medo:
– teus lábios junto dos meus
à espera que amanheça!” (JACINTO, 1985, p. 83)
Antonio Jacinto legou à literatura angolana em “Sobreviver em Santiago de Tarrafal”, um livro em que transparece a crença no ser humano, na força da poesia como arma de luta contra o colonialismo português, do sofrimento do poeta projetando-se na dor coletiva de um povo por séculos de submissão e sonhos dilacerados. Acompanhamos o longo percurso de agonia do poeta, enclausurado e isolado enquanto seus companheiros combatiam as forças salazaristas em território angolano. E Jacinto, com a certeza de que a vitória viria, continuou a sua luta na prisão: escrevendo e reescrevendo poemas, reafirmando o seu desejo de liberdade e de libertação do país.
Antonio Jacinto foi o poeta e cidadão que se recusou a se entregar e perder o sonho em ver Angola independente.
Antonio Jacinto integra uma geração de poetas que rompe com os paradigmas coloniais e busca a valorização do homem angolano, de se pensar como cidadão e intelectual independente à metrópole. Em 1948, surge o lema “Vamos descobrir Angola”. O poeta Viriato da Cruz ilustra o momento:
“Esse movimento combatia o respeito exagerado pelos valores culturais do Ocidente (...); incitava os jovens a redescobrir Angola em todos os seus aspectos através dum trabalho colectivo e organizado; exortava a produzir-se para o povo; solicitava o estudo das modernas correntes culturais estrangeiras, mas com o fim de repensar e nacionalizar as suas criações positivas e válidas; exigia a expressão dos interesses populares e da autêntica natureza africana, mas sem que se fizesse nenhuma concessão à sede de exotismo colonialista. Tudo deveria basear-se no senso estético, na inteligência, na vontade e na razão africanas.” (ANDRADE, 1977, p. 6)
A partir daí, os poetas procuravam conscientizar o povo com planos de alfabetização e outras ações sociais, enquanto os poemas tratavam de temas próximos à realidade do país. Nascia o sentimento de angolanidade, e, com o já citado Viriato, estão, entre outros, Agostinho Neto e Antonio Jacinto. Para isso, inspiram-se na ruptura proposta pela geração modernista brasileira de 1922. Carlos Ervedosa, em seu livro “Roteiro da Literatura Angolana”, comenta que:
“Eles sabiam muito bem o que fora o movimento modernista brasileiro de 1922. Até eles havia chegado, nítido, o grito do Ipiranga das artes e letras brasileiras e a lição dos seus escritores mais representativos, em especial de Jorge de Lima, Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, Lins do Rego e Jorge Amado foi bem assimilada.
O exemplo destes escritores ajudou a caracterizar a poesia e ficção angolanas, mas é, certamente, num fenômeno de convergência cultural, que podemos encontrar as razões das afinidades das duas literaturas. A mesma amálgama humana, frente a frente nas duas margens do Atlântico tropical, em presença de condições ecológicas quase idênticas, teria de conhecer reacções e comportamentos muito semelhantes.” (ERVEDOSA, 1979, p. 72)
Com denso comprometimento ético e político-ideológico, algumas obras são melhores compreendidas em seu contexto social e histórico, como as do período primordial da angolanidade. De acordo com Octávio Paz, no ensaio “A consagração do instante”:
“Como toda criação humana, o poema é um produto histórico, filho de um tempo e de um lugar; mas também é algo que transcende o histórico e se situa em um tempo anterior a toda história, no princípio do princípio. Antes da história, mas não fora dela. Antes, por ser realidade arquetípica, impossível de datar, começo absoluto, tempo total e auto-suficiente. Dentro da história – e ainda mais: história – porque só vive encarnado, reengendrando-se, repetindo-se no instante de comunhão poética. (...) o poema é histórico de duas maneiras: a primeira, como produto social; a segunda, como criação que transcende o histórico mas que, para ser efetivamente, necessita encarnar-se de novo na história e repetir-se entre os homens.” (PAZ, 1972, pp. 53-54)
As condições para um movimento literário angolano sedimentavam-se e foi criado o “Movimento dos Novos Intelectuais de Angola”, em 1950, escorados no ANANGOLA – Associação dos Naturais de Angola. No ano seguinte, é lançada a célebre revista “Mensagem – voz dos naturais de Angola”. Segundo Ervedosa,
“O Movimento dos Novos Intelectuais de Angola foi essencialmente um movimento de poetas, virados para o seu povo e utilizando nas suas produções uma simbologia que a própria terra exuberantemente oferece. (...) Assim, os novos poetas foram cantando, com voz própria, a terra angolana e as suas gentes.” (ERVEDOSA, 1979, p. 73)
Refletindo a nova postura, Antonio Jacinto escreve “Carta de um contratado”, poema dos mais representativos da época, que retrata a angústia do angolano, longe de sua terra e das lembranças dela, longe da mulher amada, e denuncia o drama do analfabetismo:
“Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta que dissesse
deste anseio
de te ver
deste receio de te perder
(...)
desta saudade a que vivo todo entregue
Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta que te levasse o vento que passa
uma carta que os cajus e cafeeiros
que as hienas e palancas
que os jacarés e bagres
pudessem entender (...)
Eu queria escrever-te uma carta
Mas ah meu amor, eu não sei compreender
por que é, por que é, por que é, meu bem
que tu não saber ler
e eu – oh! desespero – não sei escrever também!” (ERVEDOSA, 1979, pp. 74-75)
Na geração da “Mensagem”, havia preocupação em retratar a sociedade angolana, tanto a urbana quanto a rural. A poesia estava inserida em um tempo de mudanças, a necessidade de impor a sua voz contra a repressão colonial fazia com que os temas políticos e sociais prevalecessem. Os poetas, assim, iam “construindo o coletivo plural, no futuro tão necessário para que se reconstrua a angolanidade esfacelada” (PADILHA, 1995, p. 146).
Apesar do intenso patrulhamento dos órgãos repressores portugueses, a “Mensagem” cumpriu o seu papel em apenas quatro números publicados (segundo Ervedosa). Tratando de temas sociais, da busca da infância perdida, das mudanças da cidade de Luanda e, principalmente, do nacionalismo angolano em uma época de clandestinidade, “Mensagem” marcou profundamente os poetas de sua geração e tornou-se referência para as gerações seguintes. Ervedosa argumenta que:
“Como seria de esperar, o ‘Movimento dos Novos Intelectuais de Angola’ acabou por ser alvo de repressão policial. A ‘Mensagem’ terminou a sua publicação ao fim do segundo número e o Movimento teve que se desmembrar. A maior parte desses jovens acabaria por se reunir, mais tarde, não à volta de um movimento cultural, mas já sob a bandeira de um movimento político, do qual seriam líderes o ensaísta Mário de Andrade e o poeta Agostinho Neto.
Movimento de poetas, contistas e ensaístas, foi essencialmente através da poesia que aquele grupo de jovens, no dealbar da segunda metade do século vinte, se impôs e logrou virar uma página da história da literatura angolana. (...) Apesar do fim rápido e até da pequena expansão da ‘Mensagem’, ela permaneceu, contudo, como um verdadeiro símbolo.” (ERVEDOSA, 1979, pp. 87-88)
As atividades não pararam por aí. Por causa da perseguição da polícia colonial, poucos continuaram o caminho. Manuel Ferreira atesta o caráter revolucionário daqueles que assumiram o lugar de agentes históricos:
“E todos estes fizeram da sua poesia (...) um ato de fé, (...) de fato, a afirmação de sua identidade cultural. Os poetas fazem da escrita um ato de responsabilidade no combate à violência, à repressão, à exploração, à alienação. A linguagem evolui, atualiza-se, arma-se para a expressão de novas formas conteudísticas.” (FERREIRA, 1987, p. 117)
Na virada dos anos 1950/1960, alguns escritores foram para o exílio e vários são presos. “Em 1963, os escritores Antonio Jacinto, Luandino Vieira e Antonio Cardoso são condenados a catorze anos de prisão e desterrados para a colônia penal do Tarrafal.” (ERVEDOSA, p. 97) E aqui iniciamos a análise sobre o livro “Sobreviver em Tarrafal de Santiago”, de Antonio Jacinto.
Lançado em 1985, “Sobreviver em Tarrafal de Santiago” reúne poemas realizados durante a longa passagem de Antonio Jacinto no Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. Com todos os poemas datados, temos noção da angústia do poeta, já exposta no título do livro, ao resistir na manutenção dos seus ideais, o apreço à liberdade e a poesia como tema para combater a solidão em um exíguo espaço.
Dividida em três partes, trata-se de uma obra “em que a memória e a reflexão se fazem presentes, o livro é, sem dúvida, um dos momentos mais iluminados da trajetória artística de Jacinto, poeta cuja referência é imprescindível quando se fala da literatura angolana contemporânea” (MACEDO, 2007, p. 117).
Na primeira parte, “Tarrafal em redor”, os poemas tratam daqueles que levantaram suas vozes contra a ditadura salazarista e o fim do regime colonial. Por isso, foram fortemente perseguidos e sofreram pesadas punições, “de forma que o doloroso itinerário apresentado pelo livro é também o caminho de todos os nacionalistas cuja voz a opressão do colonialismo tentou silenciar” (MACEDO, 2007, p. 117).
Apreendemos que o forçado exílio é cantado pelo eu lírico, que versa o drama dos companheiros de luta rumo ao distante campo de concentração:
Neste navio x.......................ancorados
Somos náufragos ...............embarcados
Oh! Navio!
Oh! Náufragos da terra longe!
Oh! Terra longe!
Oh! Terra!
Oh! (JACINTO, 1985, p. 19)
Interessante percebermos a presença de temáticas predominantes na literatura cabo-verdiana, como o terralongismo do poema anterior “Neste navio embarcados”, a insularidade e o sentimento de evasão. Sobre esta influência, assumida pelo próprio poeta, Jacinto, em entrevista a Michel Laban, comenta que:
“Isso aí, são versos escritos noutras circunstâncias – são escritos no Tarrafal, num mundo muito fechado, também, concentracionário, longe das realidades da terra, com outra realidade, deixados influir, também, pelo ambiente cabo-verdiano: vão se lendo novas obras de autores cabo-verdianos e aí vai-se compreendendo o ambiente que dita essa literatura cabo-verdiana. A insularidade pesa sobre nós, porque nós temos uma ilha e, dentro da ilha, uma povoação, dentro da povoação, um campo de concentração... Esse isolamento é muito elevado.” (LABAN, 1991, p. 170)
O espaço concentracionário citado pelo poeta, sentimento comum aos cabo-verdianos em razão dos limites das ilhas, “o limite à esquerda / Mar / o limite à direita / Mar” (JACINTO, 1985, p. 31), incorporado por ele diante da experiência no espaço exíguo e asfixiante do cárcere é explicitado no poema:
“Cá vamos
Em Santiago, Cabo Verde
Embarcados
Mais precisamente
No Tarrafal
No Campo de Trabalho Chão Bom
Ou
Mais concreto
No pavilhão D
Caserna 2
Dos reclusos políticos de Angola” (JACINTO, 1985, p. 22)
O isolamento imposto pelo cárcere é tratado em diversos poemas, cujas datas constantes ao final de cada um, aumentam o incômodo de quem os lê e oferecem a exata dimensão da longevidade da clausura. Ao atentarmos para o próprio nome da prisão, Campo de Treinamento Chão Bom, nos causa inquietação. Além disto, destacam-se, também, características e limites geográficos em poemas com a presença das ilhas do Fogo e do Sal, assim como a impossibilidade de partir, faz com que o poeta se aproprie do desejo de emigração cabo-verdiano e ilustre a sua saudade:
“A vela no mar
escreve geometria de espuma
- partida de quem fica
e as nuvens ao sopro incessante vão
dos alísios mandos
- viagem de quem não partiu
Descem saudades (...)
No Tarrafal, anoitece...”
C.T. Chão Bom, 26.11.66 (JACINTO, 1985, p. 26)
“A ilha em frente é uma saudade que se esboça (...)
Cai o sol por trás da ilha ao entardecer (...)
Transido, morre o sol.
Anoitece.
A Solidão acontece.”
C.T. Chão Bom, 9.1.67 (JACINTO, 1985, p. 27)
“O mar
As ondas
As ilhas
E as aves
edificam solidão
e a solidão tende para infinito (...)”
C.T. Chão Bom, 5.4.67 (JACINTO, 1985, p. 31)
“Era o Oceano! Era o Oceano!
E a solidão, ano empós ano.”
C.T. Chão Bom, 9.1.72 (JACINTO, 1985, p. 42)
No diálogo proposto por Jacinto com a literatura cabo-verdiana, dois escritores ícones são lembrados. A resistência, que beira a teimosia, do agricultor em plantar em uma terra ruim remete ao romance “Flagelados do vento leste”, de Manuel Lopes:
“na folhagem resse-
quida e ferida
- memória do vento leste
a paisagem não esquece!
Feijão pedra
............pedra
Ó homem de todo o ano
na teima
na teima que a vida dá
a teima é vida na vida (...)” (JACINTO, 1985, p. 28)
E a homenagem a um dos mais combativos poetas cabo-verdianos na luta colonial em seu país, Ovídio Martins, e sua crença no ilhéu são celebrados por Jacinto:
“Do chão de pedra
brotam pedras feitas casas
Das casas de pedra
os homens que são pedra
nascem
Das ilhas de pedra
os homens vão enluarar o mundo (...)
Até quando? Até quando?
Até quando os homens-pedra quiserem!” (JACINTO, 1985, p. 43)
Em “Tarrafal Interior”, a segunda parte, os poemas são incisivos na declaração à liberdade, ao sonho e na postura contrária ao confinamento. O caminho à independência angolana torna-se irreversível:
“Nem a chuva dissolve estas pegadas
nem o tempo as tem sepultadas
remonta ao xisto a força da verdade
renasce o sol do teu seio – LIBERDADE!” (JACINTO, 1985, p. 49)
As forças coloniais estão fragilizadas diante da determinação dos angolanos. A utopia por um país independente alimenta o eu lírico, que utiliza o fazer poético como arma contra o colonialismo em um consciente exercício metapoético:
“Ó dragões de fauces sangrentas
Satãs triturando homens nos engranzos do ódio
entre o chão e as cardas das botas
procurais apagar uma a uma
as perenes chamas da esperança duma
murmura flor de sangue ou
duma poêmia imperecível
- digo-vos que sou perigoso quando
na força viril do meu verso
Espero!” (JACINTO, 1985, p. 51)
Letras em sangue, o eu lírico fortalece a metalinguagem e enrijece a posição política em prol do ideal coletivo:
“Pomos doiro são? Não são.
As palavras?
As palavras são carne
e esqueleto
e sangue
sobretudo isso – sangue” (JACINTO, 1985, p. 52)
O persistente recurso à metalinguagem nos poemas de Jacinto é comentado pela professora Tania Macedo:
“Vale ressaltar, todavia, que a metalinguagem ou a citação de outros poetas não atende a um mero exercício estético. Pelo contrário, encontramos a cada passo a expressão de uma profunda crença no humano, de forma que a poesia acaba por ser a parceira que ilumina os recantos escuros da cela, propiciando o brilho da esperança. Assim, verifica-se que a todo instante o lírico e o político se solidarizam na elaboração de uma produção liberta e libertadora – única possível de ser da poesia em nosso tempo (...).” (MACEDO, 2007, pp. 121-122)
Atento e participante na luta pela libertação angolana, Antonio Jacinto une lirismo e política em poemas de resistência à opressão colonial. Recorre a grandes nomes da literatura em língua portuguesa, tais como Manuel Bandeira e Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa), para expressar a sua dor. Logo, reivindica tudo aquilo que é negado ao seu povo.
“Choramos autenticamente por nós próprios (coitados de nós!
Teremos mais precisão, Manuel Bandeira?)
Choramos autenticamente por nós próprios
(o Álvaro de Campos bem no sabia)
Choramos autenticamente por nós próprios inautênticos
que ficamos mais pobres
e nos sentimos lesados
por nossos direitos feridos
por nossos direitos de posse frustrados
por nossos direitos à proteção
por nossos direitos à amizade
por nossos direitos ao amor
por nossos direitos à presença
por nossos direitos a uma vingança
por tudo quanto queríamos de quem nos morreu.” (JACINTO, 1985, p. 66)
Depreendemos que a poesia de Jacinto não aceita a ordem estabelecida. Questiona e enfrenta o poder vigente e tenta libertar-se de séculos de opressão. Segundo Alfredo Bosi:
"A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos, (...) Resiste ao contínuo ‘harmonioso’ pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia.
Quer refazendo zonas sagradas que o sistema profana (o mito, o rito, o sonho, a infância, Eros); quer desfazendo o sentido do presente em nome de uma liberação futura, o ser da poesia contradiz o ser dos discursos correntes. (...)
A luta é, às vezes, subterrânea, abafada, mas tende a subir à tona da consciência e a acirrar-se porque crescem a olhos vistos as garras do domínio. (...)" (BOSI, 1977, p. 146)
Em “O ritmo do tantã”, Jacinto dialoga com o poema “Quero ser tambor” de José Craveirinha, reafirma sua posição como africano, valoriza símbolos culturais locais e está sensível ao momento de libertação colonial em todo o continente africano, em um dos mais belos poemas do livro:
“Eu também sou África
tenho o ritmo do tantã sobretudo
no que pensa
no que pensa
penso África, sinto África, digo África” (JACINTO, 1985, p. 71)
Quando se encontra em momentos de desespero, chama a atenção dos companheiros de luta para não aceitarem a sua fraqueza, pois “é preciso frustrar o desânimo”. Jacinto recorre à poesia para demonstra sua indignação com a situação em que está e resiste:
“Olho-me:
Serenamente
Morri.
Alguém morreu dentro de mim. (...)
Ó, vós, companheiros, ó irmãos, de vós espero
que não me acrediteis
se me virdes ir despido de esperança
em renúncia.
É preciso frustrar o desânimo!
Morri?
Mas eu vos acompanho
(a todo o tamanho)
que a vida de novo bate à porta
como importa:
- recado de ressureição!” (JACINTO, 1985, p. 57-58)
De acordo com Alfredo Bosi, “a poesia há muito que não consegue integrar-se, feliz, nos discursos da sociedade” (BOSI, 1977, p. 143), e passa a servir como instrumento de resistência e denúncia às agruras sofridas. Mesmo encarcerado, isolado e distante dos seus pares angolanos que lutam na guerra colonial, o eu lírico não se omite, manifesta sua posição política, valoriza a união e luta com seus versos, a única arma a ser usada, na necessária mudança do mundo:
“Nas tarefas da construção do mundo
Aqui estou de novo
....................Unido
– Na procissão de vontades
Alavancas em aplicação comburente –
Aqui estou de novo
Presente!” (JACINTO, 1985, p. 50)
Mesmo longe e trancafiado, o poeta tem a poesia. Com ela, resiste e participa da revolta contra o colonialismo. A função social de sua poesia e o comprometimento com a causa libertadora não o deixam afastado da luta. O que é expresso por Irene Guerra Marques ao introduzir o livro:
“Alguém lhe acena e lhe estende amorosamente a mão. É a Poesia, a sua amiga de sempre. E o Homem, ergue-se, firme e resoluto. Lá longe, os seus poemas, ‘Carta de um contratado’, ‘Monamgaba’, estão nas fábricas, no musseque, no coração do Povo. Os seus companheiros esperam-no! Resistir! Viver para regressar!” (JACINTO, 1985, p. 10)
Em “Tarrafal lírico”, a última parte, o lirismo é predominante nos poemas. O eu lírico rebate a frieza e solidão do cárcere, canta o amor, os sonhos, a liberdade que haveria de se aproximar um dia:
“Um sonho? Ah! Dá-me um sonho
Nesta noite de frio e medo:
– teus lábios junto dos meus
à espera que amanheça!” (JACINTO, 1985, p. 83)
Antonio Jacinto legou à literatura angolana em “Sobreviver em Santiago de Tarrafal”, um livro em que transparece a crença no ser humano, na força da poesia como arma de luta contra o colonialismo português, do sofrimento do poeta projetando-se na dor coletiva de um povo por séculos de submissão e sonhos dilacerados. Acompanhamos o longo percurso de agonia do poeta, enclausurado e isolado enquanto seus companheiros combatiam as forças salazaristas em território angolano. E Jacinto, com a certeza de que a vitória viria, continuou a sua luta na prisão: escrevendo e reescrevendo poemas, reafirmando o seu desejo de liberdade e de libertação do país.
Antonio Jacinto foi o poeta e cidadão que se recusou a se entregar e perder o sonho em ver Angola independente.
Ricardo Riso
BIBLIOGRAFIA:
ANDRADE, Mário de. Antologia temática de poesia africana: na noite grávida de punhais. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1977.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.
ERVEDOSA, Carlos. Roteiro da literatura angolana. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1979.
FERREIRA, Manuel. Literaturas africanas de expressão portuguesa. São Paulo: Ática, 1987.
JACINTO, Antonio. Sobreviver em Santiago de Tarrafal. Luanda: INALD, 1985.
LABAN, Michel. Encontro com Escritores: Angola. Vol. I. Porto: Fundação Eng. Antônio de Almeida, 1991.
MACEDO, Tania. Luminosa lucidez em Tarrafal de Santiago (uma leitura de poemas de Antonio Jacinto). In: CHAVES, Rita, MACEDO, Tania e VECCHIA, Rejane (Orgs.). A Kinda e a Missanga: encontros brasileiros com a literatura angolana. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2007.
PADILHA, Laura Cavalcante. Entre voz e letras – o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX. Niterói: EDUFF, 1995.