22-10-2010Gilberto Freyre na Índia e o lusotropicalismo transnacional Teotónio R. de Souzgte mso 9]> Gilberto Freyre na Índia e o “luso-tropicalismo transnacional” Teotónio R. de Souza Um projecto para os próximos decénios Não venho fazer um elogio comemorativo dos 100 anos do nascimento do antropólogo-sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, mas também não trago denúncias que se possam acrescentar ao repertório dos analistas do Estado Novo. Aceitei o convite para educar-me a mim. Tenho uma oportunidade de fazer uma leitura crítica de dois escritos de Gilberto Freyre. Poderei assim fazer alguns reparos sobre o “luso-tropicalismo” gilbertiano, tal como ele o aplicou ao contexto indiano. Gilberto Freyre, como bem sabemos, tornou-se notável pela sua abordagem socioecológica da história do Brasil. Concebeu e esforçou-se por divulgar um “luso-tropicalismo” “transnacional” como um “bloco de sentimento e de cultura”. São esses conceitos-chave que devemos compreender para determinar quanto “sentimento” e quanta “cultura” deixaram os portugueses no Oriente, especialmente na Índia, para justificar a validade do projecto formulado por Gilberto Freyre nos anos 50, para os “próximos decénios”. 1 Antecipando algumas das minhas conclusões, acho que a análise que Gilberto Freyre fez do que ele viu e ouviu durante a sua visita a Goa não podia deixar de ser algo apressada e superficial. É óbvia a sua preocupação em ser diplomaticamente correcto, mas não hesitou deixar alguns recados que não teriam sido de agrado dos que lhe pagavam os custos. Gilberto Freyre tirou as conclusões que enquadravam bem na sua tese luso-tropicalista, contradizendo de certa forma o que ele defendia nos primeiros anos: “Menos doutrina, mais análise.” Do balanço que pude fazer da sua “viagem quase de estudo” e em busca da presença portuguesa “em terras, coisas e pessoas do Oriente”, achei antes de tudo muito interessante a sua afirmação que em Goa ele sentiu-se estar no Brasil. Encontrou em todos os lados paralelos paisagísticos que já faziam parte do seu mundo luso-tropical. Sentiu-se algo humilhado perante algumas “casas grandes” que visitou no interior de Goa, mas encontrou a cidade capital a cheirar de “inhaca”, sem esgotos e sem saneamentos modernos, só que ele residia no palácio conventual muito “romântico” que servia de residência ao governador-geral. Os comportamentos sociais montados para a ocasião pela sociedade hindu, acompanhados obviamente pelo governo, deixaram-lhe observar algum exotismo oriental. Para além disso não aparece qualquer indicação de Gilberto Freyre ter adquirido uma compreensão mais profunda da cultura indiana, especialmente da unidade cultural subterrânea de mitos e costumes, uma sociocultura profundamente ecológica, que liga os povos de línguas e subculturas visivelmente muito diferentes no subcontinente. Embora Gilberto Freyre admita de passagem que o Brasil é “diferente da Índia nas substâncias de população e de cultura, que aqui resistiram, mais do que entre nós, ao impacto lusitano”,2 isso não é suficiente para justificar a sua utilização do conceito de “nação” no contexto indiano, e isso retira a novidade do seu conceito de “transnacionalidade luso-tropical que parece ser fundamental para a sua tese. Escapou-lhe muita realidade cultural, histórica e social vivida pela grande maioria do povo goês em comum com o resto da Índia. Depreende-se isso das reflexões que faz sobre o sistema das castas e os seus perigos para a autonomia política de Goa, uma autonomia que não seja dentro da continuidade luso-tropicalista, que ele sugere aos goeses como uma opção política com um “sentido de profundidade” e não uma mera integração de “superfície” no resto da União Indiana. Devia ser fraco o conceito de profundidade que Gilberto Freyre tinha da cultura indiana, se ele reduzisse essa “profundidade” em Goa somente a quatro séculos e meio da presença colonial portuguesa. Se no Brasil, ele e as elites brasileiras habituaram-se a fazer concessões paternalistas aos índios e aos negros, a transnacionalidade da cultura indiana no subcontinente e fora dele (no sudeste asiático em especial) vem já desde há muitos séculos. É anterior à existência do lusitanismo e muito anterior ao seu “achamento” dos trópicos. É o que permite à Índia funcionar como um Estado com centenas de etnias e quase duas dezenas de línguas oficiais reconhecidas pela constituição, línguas com os seus alfabetos distintos e literaturas muito desenvolvidas. Estamos para ver se a União Europeia conseguirá repetir este fenómeno de ultrapassar a realidade banal de Estado-nação e ser algo que se possa designar “Estado-civilização” em que etnias e culturas diferentes possam ter uma unidade política. A União Indiana tem vivido com bastante sucesso este desafio dos tempos modernos durante o meio século da sua vida independente sem se ter realizada a desintegração prevista por muitos analistas políticos e cínicos. Denúncia da “inépcia” portuguesa Achei razoável e corajoso em Gilberto Freyre ele não ter excluído no seu relatório da viagem a viabilidade de Goa manter a sua “luso-tropicalidade” como uma “província da União Indiana”, se uma maioria absoluta dos naturais assim o quisesse.3 Ele lamenta a falta de vontade política em Portugal para reconhecer a capacidade dos goeses para a governação do seu Estado. Não vê necessidade de enviar governadores-gerais de Portugal e chega a afirmar que “é justo que uma província portuguesa de grande número de pessoas cultas e inteligentes, como é a Índia, se julgue com o direito de ser uma quase-nação e não mais uma subnação”.4 Acha que os portugueses não deviam repetir a sua “inépcia” em resolver uma “simples questão de técnica política ou jurídica” que levou o Brasil a proclamar a sua independência. 5 São basicamente essas as minhas reacções à uma leitura atenta dos dois escritos de Gilberto Freyre que considero directamente pertinentes ao caso, nomeadamente, Aventura e Rotina e o texto da conferência que Gilberto Freyre pronunciou no antigo Instituto Vasco da Gama na cidade capital de Goa. Tenho a honra de ser académico de número desse instituto, que após a integração de Goa na União Indiana em 1961 foi redesignado Instituto Menezes Bragança. Curiosamente, há dois anos, isto é, quando se comemoravam os 500 anos da primeira viagem de Vasco da Gama à Índia, o governo de Goa decidiu alterar a direcção e os estatutos dessa instituição, acusando-a de continuar uma política cultural colonial. É uma situação que analisei noutra ocasião, e o envolvimento diferenciado das castas com os interesses coloniais portugueses merece uma análise social mais aprofundada, mas para já vejo na medida política um reconhecimento involuntário da realidade cultural da vida goesa, onde os quatro séculos e meio da presença portuguesa instalaram uma “biodiversidade cultural” (ou “luso-tropicalismo”?) que os goeses prezam por lhes ter dado uma identidade própria que justificou a criação de Goa como um Estado autónomo dentro da União Indiana, mas que a grande maioria da população hindu de Goa ressente e não consegue digerir face à importância que a minoria católica adquiriu e consegue sustentar. 6 Vamos precisar de alguns dados históricos para contextualizar a visita de Gilberto Freyre à Índia. Em 15 de Agosto de 1947 deixou de existir a Índia como colónia britânica. Na fase final da luta pela independência houve goeses, incluindo, católicos, que participaram nela e não concebiam esta independência com Goa e as outras colónias excluídas. Um dirigente católico mais importante era Tristão de Bragança-Cunha (1891-1958). Fundou em Bombaim em 1946 o ramo goês (Goa Congress Committee) do Congresso Nacional Indiano. Formado na engenharia electrónica, ele fez uma parte da sua formação em Paris. Era primo directo do jornalista e reformador social goês Luís de Menezes Bragança, de quem o Instituto Vasco da Gama em Goa herdou o novo nome, ao qual há momentos fiz referência. Uma outra prima dele é a “Dama de Chandor”, Berta Bragança, que passou recentemente pela RTP. É uma verdadeira “casa grande” goesa com muita tradição cultural e política. Luso-tropicalismo vs. desnacionalização Tristão de Bragança Cunha foi preso, sumariamente julgado e deportado para Peniche por ter cometido o crime político de publicar um panfleto intitulado Denationalisation of Goans (A desnacionalização dos goeses), e por ter participado numa marcha de desobediência civil em Goa em Julho de 1946.7 Precisamente na altura em que Gilberto Freyre passava por Lisboa para visitar Goa, a PIDE hospedava o seu primeiro exilado político da “questão goesa” ou “caso de Goa” em Peniche, onde ficou quatro anos e meio, e depois mais alguns anos em detenção livre na métropole portuguesa. Tudo por ter denunciado os abusos do “luso-tropicalismo” na Índia portuguesa.8 É pena Gilberto Freyre não ter tomado conhecimento desse facto nem deste goês em qualquer altura. Mas numa denúncia que fez de um discurso político do embaixador de Portugal em Karachi, dr. A. B. Laborinho sobre “Aspectos jurídicos do caso de Goa”, em que o embaixador citava Gilberto Freyre como uma autoridade sobre a sociedade goesa, Tristão de Bragança Cunha contrapõe o facto de Gilberto Freyre ter estado em Goa poucos dias à custa do governo e sem grandes opções de fazer grandes críticas aos seus hóspedes.9 No recinto em Panjim, onde o regime português havia colocado uma gigantesca estátua de Afonso de Albuquerque em 1910, actualmente repousa uma urna com cinzas de Tristão de Bragança Cunha, e o largo foi chamado Azad Maidan ou Campo da Vitória. Tristão de Bragança Cunha publicou as suas ideias políticas em vários jornais e panfletos até ao fim da sua vida e sustentou um jornal em Konkani, intitulado Azad Goem (Goa livre), que também tinha uma edição inglesa, Free Goa. É importante tomar nota desse desenvolvimento social e político, de que Tristão Bragança Cunha é um representante histórico. Qualquer análise séria de “luso-tropicalismo” na Índia seria manca e suspeita, se se ignorar ou rejeitar como pouco relevantes ou absurdas as denúncias de luso-tropicalismo pelos que lutaram e morreram para desligar o luso-tropicalismo do colonialismo português em Goa. Gilberto Freyre não hesitou em chamar a atenção dos governantes portugueses a saberem optar pela reciprocidade cultural e libertar o luso-tropicalismo das discriminações colonialistas. É esta a substância da sua conferência no Instituto Vasco da Gama em Goa. Cito duas frases que resumem muito do que lá disse: “O tempo é das populações de cor e da afirmação ou da restauração dos seus valores de cultura”, e “Goa não é subeuropeia: acrescenta a Europa ao Oriente”.10 A “fala portuguesa” e a língua concani A “fala portuguesa” é uma base fundamental para a construção da nova supernação luso-tropical proposta por Gilberto Freyre. Ele não vê nenhuma dificuldade em que o luso-indianismo faça parte dessa nova construção cultural, política e económica do futuro.11 Nos sítios que ele visitou em Bombaim e em Goa ele ouviu as pessoas que falavam português. Curiosamente não ouviu ninguém a falar concani, ou pelo menos não se refere a concani uma única vez! Só nos diz que fez uma conferência em inglês na Royal Asiatic Society em Bombaim. Deixa-nos com a impressão que os goeses falavam, praguejavam, rezavam, negoceavam, etc. em português.12 Acontece que os goeses mantiveram várias expressões portuguesas de praguejar, tais como fujdaput, fodricho, etc., e não faltam vocábulos portugueses ou aportuguesados nos adágios populares, cantos folclóricos e recitações devocionais dos católicos goeses.13 Para a realidade nua e crua da lusofonia em Goa voltaremos em breve. Poucos anos após a visita de Gilberto Freyre chegou a Goa um grupo de missão dirigido por Orlando Ribeiro, também influenciado pelo luso-tropicalismo de Gilberto Freyre. Ele lamentava logo no início da sua missão: “A língua portuguesa, com grande espanto nosso, é praticamente desconhecida na maior parte das aldeias hindus onde carecíamos de efectuar inquéritos. Foi muito difícil encontrar intérpretes que nos dessem satisfação.”14 Tratava-se da situação nas Novas Conquistas ou territórios que entraram na jurisdição de Goa somente nos finais do séculos XVIII. Já nessa altura tinham mudado os ventos políticos e o fervor missionário dos Jesuítas tinha sido expulso dos territórios portugueses. O luso-tropicalismo, e a implantação da língua portuguesa, resultaram de um esforço conjunto da administração civil e da igreja nas zonas conquistadas e cristianizadas na Índia no século XVI. Pensar que não se cultivou a língua portuguesa em Goa, e de uma maneira digna de nota, seria mais uma manifestação de muita ignorância que reina neste país. Eu gostaria de remeter tais ignorantes para algumas leituras: Uma obra de síntese é do Pe. Filinto Cristo Dias, Esboço da História da Literatura Indo-Portuguesa, Bastorá, Goa, 1963. Podem também ser consultados com proveito dois volumes coordenados por Vimala Devi e Manuel de Seabra sobre a Literatura Indo-Portuguesa, Junta de Investigação do Ultramar, Lisboa, 1971, e saíram há pouco 3 volumes de Aleixo Manuel da Costa, Dicionário de Literatura Goesa, Macau, ICM e Fundação Oriente, 1998. Este octogenário que faleceu há duas semanas, foi director da Biblioteca Nacional de Goa, e registou na sua obra os escritores goeses entre 1702 e 1961, não se limita aos goeses que escreveram em português, o que dá para entender que os goeses cultivaram a língua portuguesa ou a língua inglesa, e não só, e isso sem serem lusófilos ou anglófilos. Se não me engano, os lusófonos portugueses estão habituados a identificar lusofonia com lusofilia. Não acho mal que seja assim, mas vejo isso como um projecto que falhou no passado, e pode ainda ser re-orientado para se chegar a algum sucesso. Uma lusofonia opressiva O grande mal da lusofonia foi a subalternização da cultura tradicional goesa. Foi notável a incapacidade ou o desinteresse dos portugueses num diálogo de reciprocidade cultural. No primeiro século de colonização, e quando era indispensável para a penetração missionária, houve manifestações exímias de aprendizagem da línguas vernácula. Mas já nos meados do século XVII iniciou-se uma política de imposição da língua colonial e uma guerra à língua vernácula. Mesmo isso seria tolerado, se os goeses pudessem ganhar a sua vida com a lusofonia e se não tivessem que ir buscar o sustento na Índia britânica e noutras colónias inglesas. Esse descontentamento continua profundamente registado na alma goesa através de variadas expressões do quotidiano na língua Concani. Publiquei já alguns ensaios sobre este tema da resistência cultural à lusofonia em Goa. Daí, devemos juntar ao nosso interesse pela promoção da língua portuguesa uma empatia pela experiência colonial vivida pela grande maioria dos goeses, incluindo a sua população cristã, durante os séculos da presença colonial portuguesa em Goa.15 Se insistirmos em acreditar somente o que nos interessa ou agrada, ou seja, que os goeses deveriam estar gratos pelo que ganharam com a presença colonial portuguesa e não deveriam continuar a ruminar e exagerar os males e os excessos que acompanharam o colonialismo, estaríamos a pedir mais do que estamos dispostos a dar em troca. Estamos numa nova fase de relacionamento pós-colonial em que é possível inaugurar e alterar o imaginário cultural goês, cultivando novos contactos, baseados nas novas realidades políticas e sociais de Goa pós-1961 e de Portugal pós-1974. Essas realidades devem ser divulgadas e conhecidas de um lado e do outro, o que ainda não aconteceu suficientemente. É por isso, que, com raras excepções, continua a prevalecer entre nós a tendência de tentar recuperar o passado com um saudosismo que não é acompanhado por uma auto-crítica, que questione a disponibilidade da nossa parte em aprender a língua Concani, mesmo que seja para compreender a alma goesa, compreender o que lhes dói e o que lhes faz lembrar dos portugueses com saudades. Felizmente ou infelizmente, as gerações jovens dos goeses não guardam muitas memórias, nem más nem boas, dos portugueses, e são susceptíveis de absorver novas imagens. Para isso, é fundamental admitir que os tempos mudaram: a cultura e a língua dos goeses têm tido apoios políticos e económicos para conseguir em quatro décadas um desenvolvimento que lhes fora negado durante quatro séculos e meio. Quero ainda chamar a atenção dos meus ilustres ouvintes para um erro que muitas vezes se comete nas análises que se fazem do fracasso da lusofonia em Goa. Atribui-se quase tudo aos erros do Estado Novo. Prefiro descordar. O descontentamento que se reflecte no imaginário popular e no folclore goês resultou de um processo muito mais lento e prolongado, e representa uma sedimentação das irritações de muitas gerações, durante alguns séculos.16 Não se pode desculpar o povo português, fazendo do regime de Salazar um bode expiatório para tudo. Sabemos da documentação que existe nos nossos arquivos que a expansão portuguesa no Oriente não se fez com voluntários, salvo raras excepções, nomeadamente os que iam com nomeações de ofícios bem remunerados ou possibilidades de fazer negócios por conta própria, ou aliás como missionários. Diz-nos o cronista João de Barros, referindo-se ao célebre lançado João Machado, que a prisão perpétua a que estava condenado fora trocada pelo serviço no Oriente e que saiu com a armada de Pedro Alvares Cabral. E continua: "No qual tempo el-rey D. Manuel mandado Pedralvares Cabral para a Índia, lhe deu este e outros degredados para os lançar nas terras, para que fossem descobridores".17 O mesmo cronista também diz: "Conveio a el-rei mandar soltar alguns presos, que estavam julgados para ir cumprir degredos a outras partes, porque a gente do Reino não se queria ir meter neste perigo".18 Essa prática continuou, e sempre que se aproximava a época da partida das naus da carreira da Índia e não houvesse número suficiente de enlistados, o Conselho Ultramarino recomendava que "as justiças de Lisboa prendessem os mal costumados e os desobrigados e que do limoeiro se embarcassem os que estivessem presos por casos crimes, perfazendo o número de homens requeridos para cada nau".19 Que tipo de comportamento para com os naturais da Índia se podia esperar desse tipo de pessoal que era marginalizado pela sociedade metropolitana? Provavelmente, eram esses rejeitados da sociedade portuguesa que se tornavam mais insuportáveis nos seus complexos de superioridade para compensar no estrangeiro o que se lhes tinha sido negado na sua própria terra. No que diz respeito ao Oriente, é importante ter em conta as enormidades populacionais e as culturas desenvolvidas, que não havia maneira de serem vencidas pela lusofonia dos poucos. Do que Portugal pode justamente orgulhar-se, é da influência lusotópica que deixou, e somente nesse sentido o “luso-tropicalismo” gilbertiano continua nos trópicos, incluindo Goa, com maior ou menor visibilidade determinada pelos factores históricos em questão. Os portugueses, espalhados pelo Oriente, certamente derramaram mais esperma do que sangue. O sangue que derramaram foi dos mouros. Já nos primeiros anos de conquista, temos na correspondência de Afonso de Albuquerque várias indicações nesse sentido. Escrevia ele numa ocasião, referindo-se aos portugueses em Cochim, em 1512: "Alguma da vossa gente tinham parte com essas gentias, enfadados já de dormir com essas cristãs".20 Conclua-se que a sua política de miscigenação através de casamentos legítimos não satisfazia tudo e a todos. A propensão dos portugueses para fornicar com as mulheres casadas, viuvas e com as bailadeiras indianas entrou no folclore goês. A coloração branca das populações católicas e hindus de Goa, nas zonas onde se situavam os acampamentos militares dos portugueses é facilmente explicada em Goa, e conta-se com sabor anedótico, que Goa teve uma transição política suave após as eleições livres para a primeira assembleia do Estado em 1963. Corre pelas bocas que o primeiro ministro-chefe de Goa, D. Bandodkar, era filho bastardo de um militar português e de uma bailadeira hindu. A intensidade e a gravidade do comportamento sexual dos portugueses pode ser ilustrado com um memorando dirigido pelo Secretário do Governo Geral do Estado da Índia em 1858 ao Director dos Serviços da Saúde. Nele dizia-se: "… me incumbe de dizer a V. Exa que com muito sentimento se observou no Hospital que as moléstias de um grande número dos doentes europeus eram venéreas, o que tem arruinado a saúde de tão bons soldados, que faz pena ver o estado em que estão. V. Exa. boas diligências tem feito para evitar estes males recomendando os exames semanais das mulheres perdidas que habitam o palmar, mas infelizmente esta sua ordem ainda não foi cumprida senão de meses a meses, e portanto sem poderem evitarem-se os males que com semelhante medida cumprida cuidadosamente se conseguiria".21 O que se diz dos militares não exclui oficiais de patentes superiores e outros. Tenho lido duas memórias publicadas recentemente por médicos deslocados para o serviço oficial na Índia. Contam francamente as suas fraquezas perante as mulheres indianas. Um deles, vencido pela feminilidade de duas goesas católicas, Lacxmi e Helena, ao mesmo tempo, e em duas zonas distantes de Goa, já não lhe restavam mais dúvidas porque o Kamasutra foi escrito por um indiano.22 O outro médico que chegou a Goa na fase final, e ainda ficou detido como prisioneiro de guerra em 1961, antes da chegada da sua esposa a Goa, não resistiu às graças de uma rapariga ismaelita em Diu, durante uma curta colocação nesse território.23 Pouca lusofonia e mais pouca lusofilia Apesar de uma política de mestiçagem iniciada por Afonso de Albuquerque, e apesar das escapadelas sexuais dos portugueses em serviço, a população dos descendentes em Goa nunca chegou a mais de uma centena de famílias. Muitas dessas famílias estabeleceram-se em Goa, vindas de Cochim após a sua ocupação pelos holandeses em 1663, e de Baçaim, após a conquista da Província do Norte pelos Maratas, em 1739. Os descendentes tinham monopolizado o comando da milícia oficial, o que lhes dava uma posição de força na sociedade goesa. 24 Só que a abolição da milícia decretada pelas reformas pombalinas, e o aproveitamento da educação e do jornalismo pelos naturais de Goa a partir dos meados do século XIX, agudizou as diferenças sociais. Já antes os naturais cristãos de Goa tinham entrado nas fileiras clericais em grande número, mas sentiam-se sempre subalternizados pelas ordens religiosas que excluíam os candidatos naturais, não somente das ordens religiosas, como dos cargos de responsabilidade na hierarquia eclesiástica. Esse sentimento de discriminação gerou um profundo descontentamento no clero e entre os seus familiares goeses. A aliança do Bispo goês, Mateus de Castro, com os holandeses e com o sultão de Bijapur para expulsar os Portugueses de Goa nos meados do século XVII e a Conjuração dos Pintos em 1787, foram somente duas manifestações mais notáveis desse mal-estar. Não se deve esquecer, que foram os padres goeses, com a sua formação em português, que foram o instrumento mais eficaz da penetração da língua portuguesa no interior de Goa, e ainda em territórios distantes do Padroado português do Oriente.25 E foi precisamente por causa da discriminação sentida por eles, que na sua maior parte eram filhos do povo rural e humilde, que os goeses souberam desligar a lusofonia da lusofilia. Podemos ter alguma resposta à pergunta que formulamos logo no início: Quanto sentimento, quanta cultura? O último recenseamento realizado em Goa no regime português em 1960 é indicativo dessa realidade: Registaram-se 28 línguas maternas (na sua maioria indianas, mas também inglês, português e francês). Somente 9.161 (incluindo as tropas e funcionários portugueses) declararam português como a sua língua materna, o que representava 1.46 % da população total. Retirem-se as conclusões que forem possíveis para qualquer concretização significativa do projecto da transnacionalidade luso-tropicalista de Gilberto Freyre. A lusofonia em Goa ficou associada na consciência dos naturais de Goa como uma arma política e de dominação dos religiosos brancos e dos descendentes, que a utilizavam, juntamente com a sua ascendência ou descendência lusa, para fazer demonstrações de patriotismo e nacionalismo que eles julgavam ameaçados pelos naturais. Já citei noutra ocasião as acusações que os religiosos brancos dirigiam contra os padres naturais que se julgavam aptos para os substituir nas paróquias. O arcebispo de Goa nessa altura, D. Ignacio de S. Theresa, dava toda a razão aos padres naturais, mas os padres seráficos defendiam os seus interesses perante as autoridades régias em Portugal em seguintes termos: "Todos este clérigos negros (exceptuando alguns por milagre) são ex sua natura mal inclinados e mal procedidos, lascivos, bebados, etc. .. Em estes naturais natural é o ódio e a antipatia à gente portuguesa e a tudo o que é pele branca, sendo este mais excessivo e entranhável a respeito dos párocos, porque como estes vivem e residem nas aldeias, e entre os naturais são atalaias vigilantes que põem todo o cuidado, assim em lhes investigar os seus desígnios, como em notar-lhes as suas obras (…) faz-se-lhes muito pesado o terem párocos brancos e religiosos".26 Isso não difere muito da leitura que fazia o ministro das Colónias, Vieira Machado, em tempos mais recentes, no que dizia respeito à nomeação dos Bispos africanos: "não posso ter a mesma confiança no patriotismo e no vigor das convicções nacionalistas dos pretos e dos brancos… Não alcanço bem o que o indígena pensará se ver um branco ajoelhado aos pés de um preto, confessando-lhe os seus pecados e dele recebendo a absolvição".27 A discriminação dos clérigos goeses começou-se a sentir mais profundamente após a independência da Índia, onde já havia 20 bispos goeses, e dois cardinais goeses em Bombaim e em Carachi. Portugal dignou-se nomear dois goeses para as cadeiras episcopais em Cabo Verde e em Beira, mas nenhum goês era considerado digno de dirigir os destinos da Igreja em Goa. Foi necessária a integração de Goa na União Indiana para ser reconhecido esse direito e essa capacidade do clero goês. Não posso deixar de registar aqui a arrogância nacionalista do Patriarca D. José de Costa Nunes, que estava à testa da Igreja em Goa na altura em que a Índia se tornou independente. Avisava ele os padres e os fiéis goeses que simpatizavam com a opinião anti-colonial: “Deveis tudo a Portugal.… Sabeis que o desaparecimento de Portugal da Índia representaria o maior desastre para os católicos goeses. Com o domínio português vocês são alguma coisa, sem ele bem triste será a vossa situação”.28 Triste luso-trópico Esse "background" triste do luso-tropicalismo poderá ajudar-nos a compreender melhor porque os goeses que cultivaram a língua portuguesa, fizeram-no em grande parte por necessidade ou conveniência, e raras vezes por amor à língua ou ao luso-tropicalismo de cariz gilbertiano Os goeses naturais sentiram-se discriminados perante os que utilizavam a língua e a cor de pele para compensar as faltas de mérito e capacidades intelectuais. A experiência de lusofonia para a maioria dos goeses em Goa foi uma experiência de abuso colonial. A dignidade dos goeses não podia permitir que o seu mérito fosse medido e julgado pelo seu conhecimento ou domínio de língua portuguesa. A afirmação do Concani como a língua oficial do Estado de Goa foi uma reafirmação política da dignidade cultural do povo goês. Embora o inglês seja muito usado, na realidade é o Concani que determina o maior ou menor sucesso das negociações do quotidiano em Goa de hoje. É assim que os goeses entendem a sua libertação política e cultural desde 1961. Para concluir, recordo o que escreveu o ilustre mestre da história da expansão portuguesa, prof. Charles Bozer: é a teimosia dos portugueses que explica em grande parte os seus sucessos, ou pelo menos a sua sobrevivência. Citava ele o ditado português: “Quem teima consegue.”29 Conseguiram os portugueses voltar a Goa com um Consulado Geral em 1994. Antes disso a Fundação Calouste Gulbenkian já tinha preparado o caminho e o ambiente para a colaboração cultural e a Fundação Oriente tem conseguido adaptar bem a sua actuação aos interesses locais em Goa, evitando o tipo de protagonismos que os portugueses adoram e os indianos odeiam. Não se recusa, por exemplo, bolsas aos goeses influentes na vida local e que queiram visitar Portugal (e provavelmente aproveitam do bilhete para visitar outros países onde têm família). Mas são concessões que criam laços de amizade e uma abertura mental que permite outros tipos de projectos em Goa. A Fundação Oriente paga os professores para manter os cursos de língua portuguesa em mais de 15 escolas de ensino secundário. Estas escolas optaram pela língua portuguesa como segunda língua, mas não conseguem quinze alunos para serem elegíveis para o subsídio do governo. Existem também alguns centros culturais de iniciativa privada, tais como Indo-Portuguese Friendship Society e Instituto Indo-Português. A Fundação Oriente apoia os cursos de língua portuguesa nesses Institutos em Panjim e em Margão. Tenho conhecimento que o Instituto Camões dá apoio ao leitorado no Departamento de Estudos Portugueses da Universidade de Goa. Mas nesse nível do ensino superior a experiência não tem sido muito satisfatória, tanto por falta de alunos, como por outros motivos excepcionais. Será uma confirmação de que Gilberto Freyre fez uma leitura simplista duma realidade muito mais complexa da sociedade goesa? Para concluir, não resisto comentar sobre a escolha que Gilberto Freyre faz de Fernão Lopes Mendes, e não de qualquer outro herói da presença portuguesa no Oriente, como o melhor representante do luso-tropicalismo. Dedicou-lhe 7 páginas de Aventura e Rotina, e é nestas páginas que eu encontro a fundamentação do título do livro, embora o próprio nos diga no Prefácio que a aventura e a rotina diziam respeito à sua própria pessoa e à experiência das distâncias que percorreu em tão pouco tempo. Apresenta-nos Fernão Mendes Pinto como alguém que soube fazer de aventura uma rotina, que conseguiu viver em muitos tempos e espaços. Enquanto os outros ficaram parados com as preocupações cronológicas e geográficas, Fernão Mendes Pinto soube viver várias vidas e a vários ritmos. É nestas poucas páginas e não por tudo o resto que li, que fiquei convencido de Gilberto Freyre ter conseguido aperceber-se da essência da mentalidade oriental.30 É pena que Gilberto Freyre não tenha explorado a culinária indiana, embora ele tivesse reconhecido sempre o papel fundamental da cozinha no luso-tropicalismo.31 O prémio nobel mexicano de literatura, Octávio Paz, conseguiu fazer isso melhor. Teve a vantagem de uma vivência prolongada na Índia, uma vivência quase amorosa, que ele deixou registada nos poemas que dedicou a Índia, e na análise que fez da cultura indiana em várias obras, incluindo os Vislumbres da Índia. Descobriu paralelos entre as comidas indiana e mexicana, mas notou uma diferença essencial. A cozinha ocidental era diacrónica, em que as iguarias vêm uma atrás da outra: um desfile, uma demonstração. A cozinha mestiça mexicana seguia o mesmo modelo, mas com uma diferença de estética ou contraste entre o doce e o picante. Era uma ordem pontuada por certo exotismo. Na Índia provou uma diferença radical: As diferentes iguarias juntam-se num único e grande prato, sem sucessão nem desfile, mas sim aglutinação e sobreposição de substâncias e de sabores: uma comida sincrónica. Fusão de sabores, fusão de tempos”. 32 É o Oriente que Fernão Mendes Pinto conseguiu penetrar e soube transmitir melhor do que muitos, e só por ter reconhecido isso Gilberto Freyre merece perdão dos indianos por muito que não viu e ouviu durante a sua visita à Índia. 18/02/2008 Sobre o Autor Director do Curso de História, da Universidade Lusófona, Lisboa; sócio correspondente da Academia Portuguesa da História; sócio efectivo da Sociedade de Geografia de Lisboa. |