Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


09-02-2022

Crónica de um Passageiro Localizado   N- uno Costa Santos


 

Na crónica anterior falei disso: estive fora dos Açores na semana passada. Antes do voo, quando preenchi o obrigatório formulário de localização de passageiros, perguntaram-me de que país era proveniente. Procurei as hipóteses e resolvi não escolher nem o Afeganistão nem a Eslovénia nem o Jibuti. Escolhi Portugal. Portanto, a coisa ficou assim. Proveniente de: Portugal. Aeroporto de destino: Lisboa. Diz que, no território nacional, este dever é só aplicável a açorianos e madeirenses. O preenchimento passou a ser feito online. Antes – e pude provar a situação – era feito num papelinho entregue durante a viagem com o aviso vocal, ao fundo, de que quem não o preenchesse teria de pagar uma coima tramada. Nunca vi tanta gente a escrever com tamanha rapidez – nem nos testes do liceu quando o professor avisava que faltavam cinco minutos para o instante da entrega. Nunca perceberei por que é que os Açores e a Madeira estão - ou estavam, as portas estão a abrir-se - abrangidos pelo decreto-lei que obriga ao preenchimento deste formulário, aplicável aos passageiros chegados de território não português. Mistérios da burocracia? É possível. Mas também um acto que, sob o ponto de vista simbólico, assume importância para nós, insulares. Tenho dito: não há, como se diz muitas vezes na política e nos cafés, afronta por parte das autoridades continentais em relação aos Açores. Há muito desconhecimento e também, assuma-se, desvalorização. Ninguém, ao incluir os açorianos (e os madeirenses) na redacção do decreto-lei, terá pensado que esta regra poderia no mínimo causar estranheza ou no máximo ofender o sentimento de quem, sendo insular, quer ser tratado como todos os portugueses. O melhor, nesta como noutras vezes, é ler para esquecer. E partilhar algumas notas de leitura. Chegou aqui a casa um novo jornal: Tramela Aberta. Um novo jornal criado na Ilha do Corvo, com assinatura da Associação Corvo Vivo. O recheio é diversificado. Desde matérias sobre os 150 anos da Casa do Espírito Santo até a uma notícia sobre uma mostra de cinema de Wes Anderson. De um artigo sobre o histórico Manuel Rita a uma notícia sobre o festival Tremor. Um novo jornal corvino, para citar um poeta vizinho, entre a ilha e o mundo. São estes os Açores em que acredito. A leitura da publicação foi um pretexto para visitar um livro que tenho na estante: “Histórias e Gentes da Ilha do Corvo”, de José Arlindo Armas Trigueiro. Percorro-o e vou apanhando os seus contributos, semeados de forma despretensiosa, para a divulgação da ilha - desde dados básicos sobre a descoberta e o povoamento até à atenção que a esta deram Gaspar Frutuoso, Frei Diogo das Chagas, os irmãos Joseph e Henry Bullar e Raul Brandão. Também figuram aí, entre outros assuntos, a história da imagem da Nossa Senhora dos Milagres, recolhida na costa e, segundo reza a história, elemento central na protecção dos corvinos perante os ataques dos piratas, episódios de navios naufragados, uma referência ao voleibol como desporto mais relevante do que o futebol no século XX. Hoje, arrisco, não será assim porque o Clube Desportivo Escolar do Corvo está, desde o ano passado, no campeonato da terceira divisão nacional na Série Açores. O desenvolvimento da ilha, em contraponto aos momentos de dificuldades muitas, também descritas, é contemplado, assumindo destaque o arranque da Autonomia, que começou por trazer o aeroporto, a escola básica, a ampliação do porto e a melhoria na água potável e na energia eléctrica. Um dos capítulos mais curiosos é que o se refere à visita de Mário Soares ao Corvo, em 1989, enquanto presidente da República, durante uma presidência aberta, momento que contou com a adesão afectiva dos corvinos. Dada a ausência de residenciais na altura, Soares terá passado a noite na casa do cabo do mar. O autor lembra que, por alturas da visita, na comunicação social do continente alguém terá afirmado que “saía mais barato ao Estado pôr os corvinos num hotel de Lisboa do que custear a sua existência na ilha”. Um insulto, sim, como lembra Trigueiro, a quem sempre contribuiu com os seus impostos e não usufrui de muitos dos privilégios de quem vive nos centros. Li, em tempos recentes, “João Bosco Mota Amaral – Fotobiografia”, obra publicada pela editora Letras Lavadas. O livro, da autoria de Luís Bastos, professor, homem de sabedorias muitas e capacidade de reflexão e partilha. No seu histórico há várias entradas. Além de ter sido deputado, desempenhou cargos como o de Director Regional do Emprego e da Formação Profissional e Director Regional da Educação. É o autor de um mais do que recomendável blogue, cujo título é respigado de uma anotação dos referidos irmãos Bullar, relativa à mornaça: Azorean Torpor. Todos sabemos o que isso é. O livro tem qualidades que o tornam excepcional. Combina competência na compilação e organização de documentos fotográficos e escritos. Traz um texto esclarecedor sobre a figura, desenhado por quem a acompanha há muito. E é uma muito cuidada edição da Letras Lavadas. A sua vocação didáctica é evidente, passando a constituir mais uma obra canónica para quem quiser leccionar a História (recente) dos Açores. Mostra como os anos iniciais da Autonomia trouxeram, em período de importante idealismo, alicerces de desenvolvimento, como a habitação social, os aeroportos e uma central geotérmica. E tantos, tantos mais, depois prosseguidos e complementados por gestos de vários protagonistas. Para fechar, lembro que já estamos a viver o ano do centenário do nascimento do florentino Pedro da Silveira, que contará com diversas iniciativas - de livros a exposições. De filmes a frases espalhadas por cidades e vilas. De peças de teatro a conversas, umas formais, outras informais e conviviais. Tudo para celebrar um homem que amava a sua terra e muito pesquisou e valorizou a sua cultura. A propósito: também será dado merecido relevo à sua relação com o Corvo – a todos os escritos que dedicou a esta nobre ilha. Não podia deixar de ser.

 

blog.lusofonias.net/nuno-costa-santos-cronica-de-um-passageiro-localizado-pdf/