12-04-2022MENTIRAS REPETIDAS - Abdul Cadre
As mentiras mil vezes repetidas são tidas como verdades pelos distraídos, pelos carentes de espírito crítico e pelos que gostam de acreditar no que lhes dá jeito. Dizia Pessoa que «o público não quer a verdade, mas a mentira que mais lhe agrade». Há uns anos, uma pessoa destas que andam sempre com o sagrado na boca e as energias para aqui e as energias para acolá ficou amuada comigo por lhe ter chamado a atenção de que holístico não quer dizer sagrado – ela pensava derivar do inglês holy, como em holy spirit (Espírito Santo) – e não do grego “holos”, que significa por inteiro. Ficou-se naquele velho hábito dos que pretendem ter nascido ensinados: ficas com a tua que eu fico com a minha. Claro que coisas assim não são propriamente mentiras, são conhecimentos falsos, que ao generalizarem-se é como se o fossem. É evidente que com algumas destas fakes (para utilizar vocabulário da moda) podemos até condescender que sejam inocentes e inofensivas, mas não podemos deixar de apelar ao rigor, se é que nos queremos entender uns aos outros. Já expliquei aqui e em alguns blogs como é falsa a etimologia popularizada pela literatura de cordel para o termo religião, que se tenta fazer passar como derivando de religar, falta de rigor que já atinge alguns dicionários com ligeireza de samba ou de baile de roda mandado. Também neste caso provoquei amuos. Dirão que sou viciado em etimologias. Talvez. E daí? No campo da literatura pretensamente esotérica – então na NET nem se fala – a falta de rigor e o pretensiosismo atingem o paroxismo. O uso e abuso de orientalismos são uma espécie de Covid com as suas diversas mutações. Recordo que Max Heindel, na sua obra “Conceito Rosacruz do Cosmos”, tentou afastar a utilização dos exotismos lexicais e criou toda uma nomenclatura que visava a clareza e compreensão dos fenómenos que se expunham. A vaga epidémica new age acabou com todas as boas intenções e criou um melting pot tão alienante e malcheiroso que o Cristo e a Madona se tornaram almas gémeas. Por vezes o exotismo é apenas caricato. Tenho recebido por aqui aquelas aberrações do Namaste (escrito à brasileira Namastê), coisa tida como ultra sagrada, que toda a gente usaria na Índia, inventando-se que a palavra significa «o deus que habita em mim saúda o deus que habita em ti», por vezes com mais uns acrescentos, havendo versões que substituem deus por luz. Ó, santas alminhas! Nem sequer reparam que não há língua onde com três sílabas se digam tantos tintins de faz de conta? Namaste é uma palavra do sânscrito, uma língua morta oriental, como o é para no Ocidente o Latim. E na Índia as pessoas não andam por todo o lado a dizer namaste, como por cá não andam a dizer carpe diem, pax profundis ou ámen. Esta última interjeição vem do hebraico. A palavra namaste é usada sobretudo entre budistas e jainistas no sul da Índia e significa exactamente o gesto que a acompanha, por isso, em geral, faz-se o gesto em silêncio. Nama é o verbo curvar, o «s» corresponde ao me e o te ao tu. Quer dizer apenas curvo-me a ti, isto é, os meus cumprimentos, na mais indicada das traduções. Se formos jovens e estivermos perante anciãos a interjeição será antes namaskar, ou namaskaram. Quando estive na Guiné, achava graça ao cumprimento entre amigos de algumas etnias, que demorava vários minutos e era acompanhado de vários gestos. Talvez não fosse o deus que habita em mim saúda o deus que habita em ti, etc. Diziam-me que aquilo envolvia perguntar pela família toda e até pelos animais domésticos. Nunca aprendi aquele fraseado, limitei-me ao mais usual cumprimento em crioulo: corpo di bó? Que pena, na altura, não conhecer a palavra namaste! Se conhecesse, dizia-a e punha o pessoal de boca aberta e olhos em bico. Depois, afastava-me e desenhava no rosto o meu melhor sorriso de superioridade.
|