Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


31-03-2022

SOBRE UM "OCIDENTE' QUE OPTA PELA "GEOMETRIA VARIÁVEL", OU SEJA, QUE CONDENA OU IGNORA OS CRIMES CONFORME AS SUAS CONVENIÊNCIAS ECONÓMICAS, IDEOLÓGICAS E GEOPOLÍTICAS...


Alfredo Barroso           

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primo-irmão de Mário Barroso, de Eduardo Barroso e de João Barroso Soares, sobrinho de Maria Barroso e sobrinho por afinidade de Mário Soares

 

SOBRE UM "OCIDENTE' QUE OPTA PELA "GEOMETRIA VARIÁVEL", OU SEJA, QUE CONDENA OU IGNORA OS CRIMES CONFORME AS SUAS CONVENIÊNCIAS ECONÓMICAS, IDEOLÓGICAS E GEOPOLÍTICAS...

- eis parte de uma profunda análise da guerra na Ucrânia da autoria do ex-coronel dos serviços secretos suíços JACQUES BAUD, que hoje trabalha como consultor de empresas privadas

«Certos políticos ocidentais queriam, manifestamente, que houvesse um conflito como este que está a ocorrer na Ucrânia. Nos EUA, os cenários de confrontação que foram apresentados por Anthony Bliken, no Conselho de Segurança da ONU, eram fruto da imaginação dum “Tiger Team” a trabalhar para ele. De facto, ele fez exactamente o mesmo que Donald Rumsfeld em 2002, que “contornou” desse modo a CIA e todos os outros serviços de informações, que eram bastante menos afirmativos acerca da eventual existência de armas químicas iraquianas.

Os desenvolvimentos dramáticos de que hoje somos testemunhas têm causas bem conhecidas mas que nos recusámos a encarar:

- no plano estratégico, a expansão da NATO;

- no plano político, a recusa ocidental de fazer respeitar os Acordos de Minsk;

- no plano operacional, os ataque repetidos e contínuos às populações civis do Donbass, desde há vários anos, e o seu dramático aumento no final de Fevereiro de 2022.

Por outras palavras, podemos naturalmente deplorar e condenar o ataque russo. Mas NÓS (ou seja: os EUA, a França e a União Europeia à cabeça) criámos todas as condições para o eclodir do conflito. Damos testemunho da nossa compaixão pelo povo ucraniano e pelos milhões de refugiados. Está certo. Mas se tivéssemos tido um mínimo de compaixão pelo idêntico número de refugiados ucranianos do Donbass - cujas populações foram massacradas por ordem do seu próprio Governo (ucraniano), e se foram acumulando na Rússia durante oito anos – é bastante provável que nada disto a que estamos a assistir teria acontecido.

A verdade é que o termo o termo “genocídio”, aplicado às exacções sofridas pelas populações do Donbass, é uma questão em aberto. Regra geral, reserva-se esse termo para casos de maior amplitude (Holocausto, etc.), Todavia, a definição que dele dá a Convenção sobre o genocídio é, provavelmente, suficientemente ampla para que ele também se aplique ao que se passou no Donbass. Cabe ao juristas apreciar este caso.

É hoje claro que este conflito ucraniano fez disparar a histeria colectiva. A sanções parecem ter-se tornado o utensílio privilegiado das nossas políticas externas. Se tivéssemos insistido com a Ucrânia para que ela respeitasse os Acordos de Minsk, que nós próprios (ocidentais) negociámos e caucionámos, não teria acontecido nada do que se está a passar. A condenção de Vladimir Putin é também a nossa condenação. De nada serve choramingarmos sobre o leite derramado. O que era preciso era que tivéssemos agido antes. Ora, nem Emmanuel Macron (enquanto garante dos acordos e como membro do Conselho de Segurança da ONU), nem Olaf Scholz, nem Volodymyr Zelenski respeitaram os compromissos que assumiram. Em suma, a verdadeira derrota é sobretudo a daqueles que não têm, infelizmente, direito a usar da palavra.

A União Europeia foi incapaz de promover o cumprimento efectico dos Acordos de Minsk, pelo contrário, não reagiu, nem sequer tugiu nem mugiu, quando a Ucrânia começou a bombardear a sua própria população no Donbass. Se a União Europeia tivesse reagido, Vladimir Putin não teria tido necessidade, nem pretexto, para invadir a região. Ausente da fase diplomática, a UE distinguiu-se por acirrar o conflito. Em 27 de Fevereiro, o governo ucraniano manifestou-se de acordo em entabular negociações com a Rússia. Mas, algumas horas mais tarde, a EU votou um orçamento de 450 milhões de euros para fornecer mais armas à Ucrânia, deitando mais petróleo na fogueira. A partir daí, os ucranianos convenceram-se de que não precisavam de chegar a qualquer acordo. A resistência das milícias Azov [constituídas por neonazis] na cidade de Mariupol provocará, inclusive, o novo lance de 500 milhões de euros para mais armas.

Na Ucrânia, com a bênção dos países ocidentais, aqueles que são a favor de uma negociação vão sendo eliminados. Caso de Denis Kireyev, um dos negociadores ucranianos, assassinado no dia 5 de Março pelo SBU (serviço secreto ucraniano), por ser demasiado favorável à Rússia e, por isso, considerado um traidor. A mesma sorte estava reservada a Dmitry Demyanenko, ex-chefe adjunto da direcção principal do SBU para a região de Kiev, assassinado em 10 de Março por ser demasiado favorável a um acordo com a Rússia: foi abatido pela milícia Mirotvorets (‘O Pacificador’). Esta milícia, associada ao site web Mirotvorets, que elabora a lista dos “inimigos da Ucrânia”, com os seus dados pessoais, as suas moradas e os seus números de telefone, para que eles possam ser assediados, insultados e, claro, eliminados – prática punível em inúmeros países, mas não na Ucrânia. A ONU e alguns países europeus exigiram que esse site web fosse encerrado… o que foi liminarmente recusado.

No final das contas, o preço há de ser bastante elevado, mas Vladimir Putin alcançará, mais tarde ou mais cedo, com toda a probabilidade, os objectivos que fixou para esta invasão. Os seus laços com Pequim foram mais consolidados do que se pensa. A China até poderá emergir como mediadora do conflito, ao passo que a Suíça fará a sua entrada na lista dos inimigos da Rússia. Os americanos terão de pedir petróleo à Venezuela e ao Irão para saírem do impasse energético em que se meteram: Juan Gaidó terá de sair definitivamente de cena e os EUA terão de rever lamentavelmente as sanções que têm por hábito impor aos seus inimigos.

Ministros ocidentais [portugueses incluídos] que procuram arruinar a economia russa e fazer o povo russo sofrer as consequências (uma forma indirecta de apelar ao assassinato de Putin) mostram (mesmo atenuando a forma das propostas, não alteram o fundo) que, afinal, aqueles que nos governam não são melhores do que aqueles que nós detestamos. Porque, sancionar os atletas ‘paralímpicos’ russos ou os grandes artistas russos, são atitudes estúpidas que nada têm que ver com a luta política contra Putin na Rússia.

Assim, aliás, o Ocidente está implicitamente a reconhecer que a Rússia é uma democracia, pois que, ao punir o povo russo, está a considera-lo responsável pela guerra, a qual, assim, deixa de ser tão-só “a guerra de Putin”! Se não é esse o caso, então porque é que o Ocidente procura punir uma população inteira pela falta cometida por um só?! E convém recordar que a punição colectiva é expressamente proibida pelas Convenções de Genebra…

A lição a retirar deste conflito é a de que o sentido de humanidade do chamado Ocidente tem geometria variável. Se a preocupação com a paz e com a Ucrânia era tanta, então porque não incitámos esta a respeitar os Acordos de Minsk, que ela negociou e assinou e que o Conselho de Segurança da ONU aprovou?

A integridade dos meios de comunicação mede-se pela sua vontade de trabalhar nos termos da Declaração de Munique [sobre os Deveres e Direitos do Jornalistas, aprovada em Munique em 24/25 de Novembro de 1971, e subscrita pelos sindicatos de Jornalistas da Alemanha, Bélgica, França, Holanda, Itália e Luxemburgo, países fundadores da CEE]. Mas a verdade é que, em vez disso, lograram propagar o ódio contra os Chineses por causa da crise do Covid-19, e as suas mensagens totalmente polarizadas [ou estás connosco ou contra nós] produziram os mesmos efeitos contra os Russos. Um jornalismo que se despoja cada vez mais do profissionalismo para se tornar cada vez mais militante em sentido único…

Dizia Goethe: «Quanto maior é a luz, mais negra é a sombra». Quanto mais desmesuradas as sanções contra a Rússia, mais os casos em que preferimos não fazer nada põem em evidência o racismo e servilismo do Ocidente [em relação aos EUA]. Porque é que nenhum político do Ocidente reagiu aos brutais massacres das populações civis do Donbass durante oito anos [e fala-se em mais de 15 mil mortos, só nos últimos três anos]?

Afinal de contas, o que é que torna este conflito na Ucrânia mais condenável do qua invasão e ocupação militar do Iraque, ou do Afeganistão, ou da Líbia? Que sanções o Ocidente adoptou contra os que deliberadamente mentiram perante a comunidade internacional para levarem a cabo guerras injustas, injustificáveis e assassinas [mais de meio milhão de mortos]? Procurou-se “fazer sofrer” o povo americano que nos mentiu (e que é uma democracia) antes e durante a guerra no Iraque? Teremos adoptado nem que seja uma única sanção contra os países, as empresas e os políticos que estão a alimentar com armas o conflito no Yemen, já considerado como “a pior catástrofe humanitária no Mundo”? Sancionámos porventura os países da União Europeia que praticam no seu território as torturas mais abjectas por conta dos EUA?

Colocar estas questões é responder a elas… e as repostas não são nada gloriosas!

22 de Março de 2022

(Texto traduzido por Alfredo Barroso em 29 de Março de 2022)